Santo Alberto de Jerusalém

Santo Alberto de Jerusalém

“Um pai para o Carmelo”

 
São João de Acre, cabo norte do golfo de Haifa, 14 de setembro de 1214. O patriarca latino de Jerusalém, Alberto Avogrado, avançava em procissão, rodeado de cônegos do Santo Sepulcro e de outros clérigos, celebrando a festa da Exaltação da Santa Cruz, na qual participava toda a comunidade “franca”, ou seja, os cristãos latinos e outros cidadãos atraídos pelo acontecimento. De repente, uma pessoa da multidão atirou-se contra o patriarca, ferindo-o de morte. O homicida, que era o professor do hospital do Espírito Santo, quis vingar-se por ter sido destituído de sua função por motivos de imoralidade.
 
Assim morreu o patriarca Alberto, vítima de seu compromisso com uma igreja fiel ao Evangelho. Descendente dos Avogrado, de uma família de classe média, nascera uns 60 anos antes, por volta do ano 1150, provavelmente em Castel Gualtieri, na que hoje é província de Regio Emilia, naquele tempo território piemontês identificado com vários nomes: Lombardia, Itália… Sendo um jovem de 20 anos, depois de acabar os primeiros estudos de direito, optou pela vida religiosa: não por uma carreira eclesiástica cômoda, prometedora e remunerativa, mas pela austera vida comunitária dos Cônegos Regulares de Mortara, que se ocupavam da vida comunitária de pobreza e de oração litúrgica coral unida ao serviço pastoral. Tornou-se um intérprete autorizado se sua regra de vida, até ao ponto de obter a confiança de seus superiores e dos irmãos para converter-se em mestre de noviços e, posteriormente, prior, em 1180.
 
A fama de Alberto cresceu até ao ponto de, em 1184, ter sido eleito bispo de Bobbio, onde só permaneceu alguns meses, já que, no ano seguinte, foi destinado a presidir a igreja de Vercelli, onde permaneceu uns vinte anos. Este período foi rico em atividade pastoral e diplomática, aspectos fortemente unidos em sua vida. De fato, ele não só presidia a diocese, mas também representava o imperador, em cujo nome governava o condado de Vercelli. Sendo bispo acompanhou a igreja eusebiana na celebração de um sínodo diocesano (1191), no qual nasceram novos estatutos, fruto, ao menos em boa parte, da clarividência e da competência do próprio bispo. Esta antiga legislação, desafortunadamente desaparecida, esteve em vigor ao menos até o início do século XVII, sendo modelo de concreção e flexibilidade. Alberto teve outra preocupação, a formação do clero diocesano. Foi muito valorizado pelos papas, os quais enviaram-no como mediador para dirimir desavenças entre os bispos e os capítulos dos cônegos ou entre as dioceses vizinhas. Estes foram também anos de intensa atividade política: como bispo-conde manteve sempre boas relações com os imperadores Frederico I “Barbarocha” e seu filho Henrique IV, a quem acompanhou muitas vezes em suas viagens para Itália. Não foi fácil a relação com o município de Vercelli, cuja conhecida notoriedade ia crescendo. A sabedoria e a competência jurídica de Alberto também tornaram-se visíveis por ocasião da reforma dos estatutos dos capítulos dos Cônegos de Biella e Santa Ágata e Santa Maria Maggiore de Vercelli. O bispo também foi requerido para colaborar na revisão das constituições dos Humilhados, a nova ordem religiosa composta por leigos em continência e sacerdotes.
Todas estas atividades, junto com sua fama de homem espiritual, fizeram que os cônegos do capítulo do Santo Sepulcro sugerissem o seu nome ao papa para ser patriarca de Jerusalém. Inocêncio III (1198-1216) acolheu a proposta e, depois de vencer sua resistência como candidato, enviou-o como patriarca de Jerusalém e legado papal para a província da Terra Santa. Nos primeiros meses de 1206, Alberto permaneceu em São João de Acre, sede provisória do patriarcado, por estar impedida a entrada e a residência em Jerusalém, que estava em mãos dos sarracenos. Em seguida, ocupou-se em melhorar a situação da Igreja latina na Terra Santa. Como legado papal interviu no nomeamento de bispos e fomentou o diálogo com os sarracenos e entre os diversos grupos e autoridades cristãs.
 
Nessa ocasião, o reino latino de Jerusalém se limitava a pouco mais da costa do golfo de Haifa aos territórios libaneses e à ilha de Chipre. Depois da batalha de Hattin (1187) o domínio sarraceno fora restabelecido em quase toda a Terra Santa. Entre os territórios dominados pelos “francos” ficou o promotório do Carmelo. Justamente em sua vertente ocidental sul, no vale do Peregrino (la Wadi ‘ ain es Siah), nas ruínas da antiga capela bizantina, depois de 1189, estabeleceu-se um grupo de peregrinos latinos que se propuseram viver como eremitas em santa penitência.
 
Formavam uma de tantas comunidade nascidas durante aqueles anos na terra fecunda de uma sociedade em movimento e de uma Igreja em efervescência pelos interrogantes sobre a essencialidade, a simplicidade e a radicalidade de vida. A sociedade ocidental estava em profunda transformação: as antigas estruturas feudais, fechadas e baseadas numa agricultura de subsistência como mínimas mudanças sociais, iam dando espaço a novas aglomerações urbanas cujo centro vital era o mercado, o bispado, a administração municipal e inclusive a universidade. Novos grupos sociais compostos por mercadores, artesãos, profissionais, iam substituindo as antigas estratificações sociais dos cavaleiros e camponeses. Inclusive na própria Igreja, pululavam os movimentos de opção pela pobreza e os “evangélicos”, que eram pregadores populares que com frequência percorriam amplas regiões, alimentando a fome da Palavra de Deus; além desses, ainda havia os eremitas solitários e em grupo, que se estabeleciam em lugares desérticos, passando a ser um atrativo para muita gente. O desejo espiritual de uma vida cristã mais substancial e baseada no Evangelho mesclou-se com a explosão demográfica, o crescimento da riqueza e, como causa disto, as diferenças sociais, o aumento da cultura universitária, a mobilidade social e outros fatores, provocando uma imponente marcha à Terra Santa, o que levou às cruzadas. O desejo de trasladar-se àquela Terra para encontrar o Senhor, visitando os lugares de sua vida terrena, provocara efetivamente um movimento intenso no povo, que se transformou na peregrinação armada chamada cruzada.
 
Neste contexto nasceu a comunidade dos Irmãos Eremitas do Carmelo. Alberto lhes escreveu a Fórmula de Vida, autêntica coluna vertebral da vida carmelitana, que passou a ser a Regra Carmelita. Uma breve carta na qual se descrevia em poucas linhas seu propósito, ou seja, a vida e a fisionomia por as quais o grupo se decidira. Pretendiam ser uma fraternidade de eremitas obedientes ao prior, reunidos em torno de Jesus Cristo, em contínua e orante meditação de sua Palavra, alimentados pela Eucaristia, em silêncio, trabalho, pobreza, discernimento e diálogo fraterno.
 
Nela aparece, pela primeira vez, o DNA do grupo, ou seja, o carisma. Este era formado por dois elementos essenciais da vida cristã e religiosa, porém combinados de uma maneira original. Caridade, oração, centralidade de Cristo, serviço e algum outro elemento da vida espiritual, tudo isto articulado de maneira harmoniosa tal que proporcionava ao grupo e aos seus membros a graça de permanecerem em constante busca do rosto de Cristo, para serem transformados pelo Espírito e viverem em plena comunhão com o Pai e também com os irmãos. O ícone ideal da primeira comunidade de Jerusalém, como é descrito nos Atos dos Apóstolos ( 2,42-47; 4,32-35; 5, 12-16) constituía a firme referência estrutural dos primeiros Carmelitas. É difícil saber se a ideia foi sugerida por eles ou por Alberto, porém é certo que a composição da Fórmula de Vida e a articulação dos elementos são do patriarca.
 
Alberto, sem que saibamos de que modo, porém certamente em diálogo com os próprios irmãos, conseguiu harmonizar as diversas aspirações que aparecem na Fórmula de Vida. Antes de tudo, aparece o forte chamado a seguir Jesus justamente ali onde ele viveu, consumou seu sacrifício e ofereceu a vida por sua ressurreição: este era o ideal da peregrinação a Jerusalém, contido na tradição cristã. Tratava-se de um caminho de transformação contínua, que conduzia os eremitas a fazer a experiência de ressuscitar da morte, a passar da vida carnal à espiritual. Deste modo, os carmelitas se fizeram irmãos, capazes de construir uma comunidade na qual é possível encontrar o Senhor e estar dispostos para servir os irmãos e irmãs do povo de Deus. Tinham o desejo de seguir Jesus na pobreza apostólica, como sinal da essencialidade da vida e da radical dependência de Deus, próprio de muitos movimentos do tempo que optavam pela pobreza. Havia um chamado à solidão do deserto, mesmo que mitigado por elementos comunitários e cenobíticos, que expressava o desejo de buscar o Senhor como o absoluto, para permanecer na intimidade com Ele. Havia a exigência da luta espiritual expressa no convite a revestir-se da armadura espiritual (Ef 6,11-17): uma interessante releitura da mentalidade do momento imbuída dos ideais cavalheirescos e do espírito da cruzada. O desejo de contribuir com a reforma da Igreja se expressou na escolha por venerar a Maria, a Mãe do Senhor, a Senhora do Lugar, ou seja do próprio Carmelo e da Terra Santa, conquistada pelo sangue de seu Filho: a ela foi dedicada a capela construída no meio das celas dos irmãos. Esta devoção mariana inicial continha todos os elementos que se desenvolveram ao longo da multissecular história da Ordem. À semelhança da escolha do modelo ideal do profeta Elias, ao qual estava unido o lugar no qual se estabeleceram os eremitas – “junto à fonte”, chamada popularmente de Fonte Elias -, a devoção mariana passou a ser motivo de identificação e chamado à dimensão profética ou seja, ao anúncio livre e visível do quanto Deus quer para a história humana.
 
Alguns autores têm tentado definir a contribuição específica de Alberto e seu papel na fundação do Carmelo; porém são somente hipóteses baseadas em provas frequentemente frágeis e não sempre suficientemente verificadas. Se bem que seja plausível atribuir a Alberto a redação da carta que contém a Fórmula de Vida (isto nunca foi posto em dúvida pelas fontes), e, além disso, se possa atribuir a Alberto as citações bíblicas diretas ou indiretas (são tantas que alguém chegou a dizer que a Fórmula de Vida se apresenta como fruto de uma lectio divina), sem embargo não se pode afirmar com certeza que partes ou que conselhos são fruto exclusivo da mente e do coração do patriarca e quais do desejo dos próprios eremitas. De fato, estes já viviam no Carmelo e haviam dado uma forma inicial a seu propositum (Regra 3). Ainda assim, creio que se pode atribuir à experiência de Alberto, cônego da Santa Cruz de Mortara, ao menos a indicação de São Paulo como modelo (Regra 20): um dom específico do patriarca Alberto aos Carmelitas. A menção do apóstolo foi, de maneira mais ou menos consciente, de grande ajuda para os irmãos na hora de orientar-se para o apostolado explícito e direto, sem que por isso fosse desprezada a dimensão contemplativa carismática, originária e própria. Por outra parte, o mesmo Paulo foi também um místico (cfr. 2Cor 12,1-10) e um homem de profunda oração (Rom 16,25-27; 2Cor 2,1; Ef. 3,14-21). Da mesma maneira se pode manter que é uma herança de Alberto a forte dimensão eclesial que percorre o texto da Fórmula de Vida, a qual conservou em todo tempo o esforço dos Carmelitas a favor da vida eclesial e da evangelização.
Tudo isto permitiu à comunidade eremítica do Carmelo não encerrar-se em si mesma num narcisismo conservador da própria escolha e do próprio estilo de vida. Os irmãos se abriram ao mundo e à história, sem perder, por isso, as próprias origens, seu DNA. Instigados pelo aumento de membros da comunidade, pela pressão sarracena e pela insegurança do lugar, decidiram iniciar a migração para o Ocidente, do qual procediam os primeiros peregrinos penitentes. Desta maneira, além das fundações na Terra Santa e em Chipre, formaram-se Carmelos na Sicília e na Itália (Messina e, depois, Pisa), na Inglaterra (Aylesford, em Kent, e Hulne, em Northumberland), em Provenza (Les Aygalades e Valenciennes), e na Alemanha (Colônia).
 
A Fórmula de Vida de Santo Alberto continuou modelando a vida dos irmãos e passou a ser Regra reconhecida e aprovada, com alguns importantes acréscimos e modificações do papa Inocêncio IV (01 de outubro de 1247). A essencialidade, a flexibilidade e o dinamismo deste tesouro fizeram dele uma referência capaz de oferecer alimento e inspiração a muitos grupos de fiéis, religiosos e leigos, que constituem a Família Carmelitana.
 
A carta entregue por Alberto aos irmãos eremitas que viviam junto à fonte de Elias completa agora mais de 800 anos, porém não perdeu absolutamente seu frescor, e, como um fruto em tempos de mudança, conseguiu adaptar-se a situações sempre novas, abertas à esperança de Deus para os homens.
 
Por Pe. Giovanni Grosso, O.Carm.
 
 
*Texto enviado pela Comissão de Espiritualidade – OCDS

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