VIDA DE SÃO JOÃO DA CRUZ – TESTEMUNHA DA LUZ
Nesse colégio aprende, além do catecismo e da doutrina cristã, a ler e escrever. Nesse colégio os estudantes são enviados para aprender diversos ofícios: carpinteiro, alfaiate, escultor de madeira, pintor. Ele fracassa em todos. Mas esses ofícios deixam marcas em seu caráter e ele os usará em seus escritos. Os diretores do colégio decidem enviá-lo ao MOSTEIRO DE MADALENA para prestar serviço de coroinha. Aqui se sente bem, é estimado pelas monjas, e encanta pela modéstia, seriedade, habilidade com que desempenha o seu trabalho.
Na idade 14 anos, atinge o máximo de sua altura 1,50m. Seu porte é modesto e sereno, tem rosto moreno e agradável, constituição robusta, olhos negros e vivos, é encantador e tranqüilo. Todos lhe querem bem e é simpático. Do colégio da doutrina passa a trabalhar no HOSPITAL DE LA BUBAS. Aqui tinha duas ocupações servir como enfermeiro e recolher as esmolas para as despesas. A caridade para com os doentes, a paciência, a delicadeza, a alegria e disponibilidade com que atendia aos enfermos lhe cativaram a simpatia geral. Essa experiência lhe será muito útil quando escrever a CHAMA VIVA DE AMOR, pois o contato com as feridas dos doentes lhe servirá de metáfora para falar da outra chaga que regala alma. O primeiro a admirar João é o administrador D. Alonso Alvarez de Toledo que lhe concede licença para estudar no COLÉGIO DOS JESUÍTAS. Aqui ele estuda gramática e filosofia. Desse colégio sairá para se tornar religioso, aos 21 anos.
Em Medina estão presentes os Beneditinos, Premonstratenses, Agostinianos, Trinitários, dominicanos, Jesuítas e os Carmelitas. João é conhecido por todos e por todos é apreciado. Em qualquer porta que batesse seria acolhido. Mas, ele escolhe o CARMELO.
Inicia sua vida religiosa no Convento de Santa Ana em Medina del Campo. É revestido com o hábito da Ordem no dia da liturgia de São Matias e por isso, segundo o costume da ordem toma o nome FREI JOÃO DE SÃO MATIAS. Começa aqui sua breve, mas fecunda e santa jornada. No Carmelo aproveita plenamente do silêncio e solidão. Estuda profundamente a Regra da Ordem e por ela se apaixona, desejando a intimidade com Deus, a experiência da presença de Deus, impressionado com a figura do profeta Elias. Já no noviciado começa a se distinguir pelo comportamento, seriedade com que desempenha seu trabalho e piedade com que manifesta na liturgia.
Nessa fase sabe aproveitar cada momento para se aprofundar e se preparar para a sua profissão religiosa. Quando escrever seus DITOS DE LUZ E AMOR, enumerará entre as doze estrelas necessárias para a alma no caminho de perfeição, a POBREZA, a CASTIDADE e a OBEDIÊNCIA.
A POBREZA, que lhe foi imposta desde que nasceu e o levou até a experimentar a amargura da miséria, agora ele a escolhe livremente, jamais a desprezou e agora na ordem a deseja ardentemente. Pobreza que não é simples renúncia aos bens da terra, mas empenho constante e sério para libertar a alma e o coração de toda sedução. No prólogo DA SUBIDA DO MONTE CARMELO, nº 8 diz que “não se trata de matéria moral e saborosa, nem de consolações sensíveis como gostam os espirituais. Pretendo ensinar doutrina substancial e sólida para aqueles determinados a passar pelo despojamento interior”.
Nos ditos de luz: “traga interior desapego de todas as coisas e não ponha o gosto em qualquer temporalidade; assim recolherá a sua alma aos bens que não conhece.” (D 94)
“Desapegada do exterior, desapossada do interior, desapropriada das coisas de Deus, nem a prosperidade a detém nem a adversidade a impede” (D123)
Quando ele inicia a reforma da ordem, despoja-se dos sapatos e a caminha a pés descalços. Quando está perto de morrer, chama o prior do convento, pede perdão por todos os incômodos, mostra o hábito que usa e lembrando-se de que é pobre e não tem nada com que ser sepultado, pede-lhe que lho dê como esmola.
A CASTIDADE para ele jovem, que na flor da idade escolhe a vida religiosa, é saciada em Deus. Tem sede do absoluto.
“A alma desejosa de que Deus se lhe entregue totalmente, há de se entregar toda, sem reservar nada para si.” (D126)
“O demônio tem a alma unida a Deus, como ao próprio Deus”. (D124)
Na oração da alma enamorada: “Os céus são meus e minha é a terra; minhas são as criaturas, os justos são meus e meus os pecadores; os anjos são meus e a Mãe da Deus e todas as coisas são minhas; e o próprio Deus é meu e para mim, porque Cristo é meu e todo para mim”.
A OBEDIÊNCIA é vivida ele e transparece em seus escritos: Na Subida 2S5, 3: “Quando as duas vontades a da alma e a de Deus, de tal modo se unem e conformam que nada há em uma que contrarie a outra. Assim, quando a alma tirar de si, totalmente o que repugna e não se identifica à vontade divina, será transformada em Deus por amor”.
“Quem confia em si mesmo é pior que o demônio.” (D176)
“Se queres ser perfeito, vende a tua vontade e dá aos pobres de espírito e vem a Cristo pela mansidão e humildade e segue-o ao Calvário e ao sepulcro”. (D175)
A obediência foi a luz que iluminou a sua vida, desde o noviciado. A quem se cansa em buscar fazer muitas coisas para a glória de Deus, ele diz: “Deus quer de ti antes o menor grau de obediência e sujeição, que todos esses serviços que pensas prestar-lhe” (D 13).
Para o discernimento dos espíritos não há norma mais segura. O demônio pode se esconder em tudo, inclusive nos grandes desejos que temos de sofrer por amor a Deus como no caso das grandes mortificações e penitências. O único caminho que se tem para, com certeza, o desmascararmos é o da obediência. Para ele, dizer não à obediência é se expor a todos os perigos.
Após o noviciado, ele se transfere para Salamanca para continuar os seus estudos, e aqui chama também a atenção pela dedicação aos estudos e recolhimento na oração, sendo por isso, nomeado “mestre dos estudantes”. Torna-se sacerdote, tendo se preparado com todo o empenho para esse caminho. Uma irmã do Mosteiro da encarnação de Ávila, sua grande admiradora é testemunha de que São João de fato é uma pessoa de uma inocência, a sua maneira de se comportar como se fosse um menino… o seu olhar suave como as suas palavras, tudo deixava entrever a sua alma puríssima. Sua expressão, “antes morrer e deixar-se fazer em pedaços do que pecar.” Tem o desejo de ser fiel ao carisma primitivo da ordem que é mais contemplação que atividade apostólica. O Carmelo da forma como está não lhe agrada, pois perdera a fisionomia da época ermítica. E ele abraça com entusiasmo o ideal ermítico-contemplativo e deseja vive-lo com toda a fidelidade possível. O que fazer ir para a Cartuxa?
Entra em cena Teresa de Jesus. Ele volta à Medina, ao seu convento de origem para celebrar a sua primeira missa. Está acompanhado de Frei Pedro de Orozco e quem os recebe é o Pe. Antonio de Herédia, prior do convento. Santa Teresa tinha acabado de fundar seu segundo mosteiro da reforma em Medina. Ela pensa em estender a reforma aos religiosos. Recebeu para isso a necessária autorização e a benção do geral da ordem. Expõe seu projeto ao Pe. Herédia que para sua surpresa se declara disposto a começar a obra. Ele sente necessidade de maior solidão e austeridade. Para realizar esse desejo batera à porta da Cartuxa. A madre se sente feliz, mas não totalmente tranqüila. O Pe. Herédia tinha uma certa idade e, segundo ela não tinha condições de suportar o rigor para essa empresa. Disse-lhe que aguardasse algum tempo. Frei Pedro que viera de Salamanca com frei João, foi visitar o Carmelo. No encontro com Teresa ficou indiferente ao seu convite, mas apontou um nome João de S. Matias, conhecido pela austeridade de vida. No encontro dos dois, ele fala do desejo de ir à Cartuxa. Teresa o vê com 25 anos e o faz compreender que louvaria muito mais ao Senhor se, ao invés de buscar a Cartuxa, realizasse o mesmo ideal em sua própria ordem. S. João sabe que pode ser contemplativo em sua ordem, mas a situação em que esta se encontra agora torna o ideal quase impossível. Está plenamente de acordo com ela. Só pede uma coisa: “que tudo se rápido.” Teresa fica fascinada pelos desejos do jovem carmelita e pede a suas filhas que a ajudem a agradecer a Deus. Encontrara, para iniciar a reforma entre os religiosos, “um frade e meio”, se referindo à estatura do Pe. Antonio e de frei João. Agora pode começar. A primeira coisa que faz, aproveitando a sua permanência em Medina é um hábito para o primeiro carmelita descalço. A prova acontece numa das tantas visitas de frei João. Ele tirando o hábito da Observância, finamente talhado, entra no locutório com o de burel, preparado pela Madre e com os pés descalços. A Madre e suas filhas contemplam o “a figura do primeiro descalço” revestido com os sinais da penitência e do despojamento.
S. João volta à Salamanca pra completar os estudos e se prepara para a Reforma.
Um ano depois S. Teresa tem uma casa, em Duruelo. Aqui nasce, em 28 de novembro de1568, o CARMELO DESCALÇO MASCULINO e um nome JOÃO DA CRUZ. Ele inicia o Carmelo Descalço junto o Pe. Antonio Herédia que toma o nome Frei Antonio de Jesus. Madre Teresa durante o tempo em que permanece em Medina, encontra-se frequentemente com S. João. Os dois se compreendem perfeitamente. Os encontros são sempre repletos de sopro divino a ponto de Teresa falando às suas irmãs dizer: “O padre João é uma das almas mais puras e santas que Deus possui em sua igreja. Deus lhe infundiu grandes tesouros de sabedoria celeste”. Deseja que todas as monjas se deixem instruir por ele nos caminhos que conduzem ao vértice da mais alta perfeição. Ele é tudo que a madre deseja para começar trabalho tão cheio de responsabilidade como este da reforma entre os religiosos. É completo: amante de Deus, do silêncio, é puro, sábio, prudente, conhecedor do autêntico espírito carmelitano e das sendas de Deus. Sua conversação a enriquece, deixa-a mais segura, mais próxima de Deus. As suas experiências místicas tem em S. João todo o apoio e confiança para abrir-lhe mais ainda a sua alma. Recebera a graça da transverberação e tem necessidade de se abrir com quem possa compreender, e sabe que S. João é homem favorecido por Deus.
A vida de penitência, solidão, silêncio começa a impressionar, o convento fica pequeno e torna-se necessário a mudança para Mancera. Aqui o ascetismo de S. João é vivido plenamente. Tudo o que desejava silêncio, pobreza, forte vida interior ele o vive. Quer chegar ao mais alto: a comunhão com Deus. Quer amá-lo com toda a totalidade do seu ser. Na “subida” escreverá: “Oh! Se soubessem as almas interiores a abundância de graças e de bens espirituais de que se privam, recusando desapegar-se inteiramente do desejo das ninharias deste mundo! A alma cujo amor se reparte entre a criatura e o Criador testemunha sua pouca estima por este, ousando colocar na mesma balança Deus e um objeto que dele está infinitamente distante. O que ele mesmo aprendeu na vida com meditações, penitências ensina a seus noviços e mostra o caminho com zelo, serenidade, acolhimento, doçura. É exigente consigo mesmo, mas muito afetuoso com seus filhos. Indica-lhes o caminho que conduz à verdadeira liberdade de espírito e aqui chega-se à contemplação de Deus tanto quanto é possível nesta terra. O ideal, a comunhão com Deus, ele o realiza impondo exigências, pois, escalar o monte para chegar ao vértice, arrastando coisas, não só retardariam a subida, mas poderia impedi-la totalmente.
Em 1S 5,6: Durante a ascensão desta montanha, é necessário reprimir e mortificar, com cuidado incessante, todos os apetites. E tanto mais depressa chegará a seu fim, quanto mais rapidamente isto fizer.
1S 11,3 e 4: Quantos aos apetites deliberados e voluntários, e pecados veniais de advertência, ainda sendo em coisa mínima, basta um só deles que não se vença, para impedir a união da alma com Deus. Quanto a certos hábitos de voluntárias imperfeições, dos quais a alma não consegue corrigir-se, não somente impedem a união com Deus, como detém os progressos espirituais. Estas imperfeições habituais são: costume de falar muito, apegozinho a alguma coisa que jamais se acaba de querer vencer, seja a pessoa, vestido, livro ou cela; tal espécie de alimento; algumas coisinhas de gostos; conversações, querendo saber ou ouvir notícias, e outros pontos semelhantes.
Em 1S 4,7: “Todas as delícias e doçuras que a vontade saboreia nas coisas terrenas, comparadas aos gozos e às delícias da união divina, são suma aflição, tormento e amargura. Assim todo aquele que prende o coração aos prazeres terrenos é digno diante do Senhor de suma pena, tormento e amargura, e jamais poderá gozar os suaves abraços da união com Deus”.
Em 2S 5,7: “O amor consiste em despojar-se e desapegar-se, por Deus, de tudo que não é Ele.
O desapego de todo o criado leva S. João a dar o verdadeiro significado e valor a todas as coisas e criaturas. A volta às criaturas e à criação com os olhos purificados pela luz que emana da contemplação de Deus é cheia de reconhecimento:
“Ó BOSQUES E ESPESSURAS,
PLANTADOS PELA MÃO DO MEU AMADO!
Ó PRADO DE VERDURAS,
DE FLORES ESMALTADO,
DIZEI-ME SE POR VÓS ELE HÁ PASSADO!”
“MIL GRAÇAS DERRAMANDO,
PASSOU POR ESTES SOUTOS COM PRESTEZA
E ENQUANTO OS IA OLHANDO,
SÓ COM SUA FIGURA
A TODOS REVESTIU DE FORMOSURA.
De Mancera, passa por Pastrana, Alcalá de Henares e é sempre o primeiro na prática da vida austera, com doçura e mansidão de modos que conquista jovens para a vida carmelitana. Quando Teresa é chamada para ser priora no Mosteiro da Encarnação em Ávila; lembra de S. João para a direção espiritual do mosteiro que passa por crise tanto no plano econômico como espiritual. E quando se refere a S. João para as monjas lhes diz: “Senhoras, dou-lhes um confessor que é santo”.
Frei João se detém em Ávila neste convento e aqui acontecem grandes progressos espirituais. A mudança ali se torna visível. A paz retorna, a vida em comunidade se edifica com fervor; elas descobrem o valor do despojamento, recolhimento, oração, silêncio, solidão. As conversas nos locutórios cessam. Mas, a que mais usufrui e encontra a plena realização para o seu progresso espiritual é Santa Teresa. É sob os olhos de S. João que ela encontra o matrimônio místico. É neste período que atinge o vértice da união com Deus. Ela diz a respeito dele: “Busco aqui e ali a luz; acho tudo de que tenho necessidade no meu senequita. As riquezas e tesouros que Deus pôs nesta alma são grandíssimos”.
Em 1573, no dia da festa da Santíssima Trindade, frei João se acha no locutório do mosteiro. Por detrás das grades, Teresa o escuta com prazer, pois fala sobre o mistério de Deus. A santa mantém os olhos baixos, a alma recolhida. De improviso, frei João se cala e, com o rosto todo inflamado de amor, eleva-se da terra, levando consigo inclusive a cadeira à qual se agarrara na falta de outra coisa. Teresa olha para ele e, também ela arrebatada por Deis, se eleva. A irmã Beatriz, que quer falar com a Madre, entra e é testemunha da cena feliz. Teresa para desculpar-se diz: “Não se pode falar de Deus com o meu padre João sem que, de súbito, ele entre em êxtase, arrastando junto a si também os outros”. Quando Madre Ana de Jesus ficar chocada por ouvir Frei João chamar Teresa de “sua filha”, esta lhe escreverá que frei João é verdadeiramente o pai de sua alma, um homem celestial e divino, aquele de quem recebeu maiores luzes, porque é muito espiritual e de grandes letras. Que todas em sua casa falem com ele, que lhe abram a alma e verão que proveito obterão. E noutra ocasião dirá: “Encontrei um homem segundo o coração de Deus e meu”.
São João semeia o amor e não cansa de semear e nem de aguardar com paciência os frutos. Por isso, nos DITOS DE LUZ ele fala: ”A alma que caminha no amor, não cansa nem se cansa”. Ele permanece cinco anos em Ávila e lá no Convento da Encarnação ele não é o único a confessar as monjas. Os Calçados também freqüentam. Como tem o dom de conquistar e levar as almas a Deus, começam as perseguições. Os Calçados não tolerando mais seus irmãos Descalços, começam a tramar o fim da reforma. A perseguição culmina com a prisão de frei João e seu companheiro frei Germano. Frei João é levado ao CÁRCERE em Toledo. É dezembro de 1577.
Aqui sua luz brilha na escuridão da noite, noite escura. Começa o seu itinerário de escritor com o primeiro dos seus grandes tratados, o CÂNTICO ESPIRITUAL:
“ONDE É QUE TE ESCONDESTE, AMADO,
E ME DEIXASTE COM GEMIDO?
COMO O CERVO FUGISTE,
HAVENDO-ME FERIDO,
SAÍ, POR TI CLAMANDO, E ERAS JÁ IDO.”
Com o coração mergulhado na noite ele enriquece sua dolorosa recordação, compondo:
“EM UMA NOITE ESCURA,
DE AMOR EM VIVAS ÂNSIAS INFLAMADA,
OH! DITOSA VENTURA!
SAÍ SER NOTADA,
JÁ MINHA CASA ESTANDO SOSSEGADA.
ESSA LUZ QUE ME GUIAVA,
COM MAIS CLAREZA QUE A DO MEIO-DIA
AONDE ME ESPERAVA
QUEM EU BEM CONHECIA,
EM SÍTIO ONDE NINGUÉM APARECIA.
OH! NOITE QUE ME GUIASTE,
OH! NOITE MAIS AMÁVEL QUE A ALVORADA!
OH! NOITE QUE JUNTASTE
AMADO COM A AMADA,
AMADA JÁ NO AMADO TRANSFORMADA!
Aquela eterna fonte está escondida,
Mas bem sei onde tem sua guarida,
Mesmo de noite.
E sua origem não a sei, pois não a tem,
Mas sei que toda origem dela vem,
Mesmo de noite.
Sei que não pode haver coisa tão bela,
E que os céus e a terra bebem dela,
Mesmo de noite.
Eu sei que nela o fundo não se pode achar,
E que ninguém a pode atravessar,
Mesmo de noite.
São João começa o seu sofrimento mais pungente, a cruz que leva no nome, começa a carregar em si mesmo com consciência e desejo de suportá-la. Recusa toda a ajuda que lhe oferecem, desde quando é preso, onde pessoas próximas como o arrieiro, preparam planos de fuga e a todos não cede, agradece, mas quer padecer por Cristo. Quando é declarado preso em nome do Vigário Geral, ele responde: “pois bem, vamos”. Ali, ele experimenta à semelhança de Cristo, a captura à noite, quem o prende são homens da Igreja, arrastam-no ao Convento onde não faltam escárnios, humilhações e flagelos. Tudo suporta em silêncio. Alguns padres calçados vêm de vez em quando falar junto à porta do cárcere e para inquietá-lo, começam a ameaçá-lo de morte, falam do fim da reforma, da sua obstinação e supressão de seus conventos. Aliado à fome, frio, calor, condições sub-humanas que o expõe, as dúvidas, interrogações na sua alma. Quando sair do cárcere e escrever a obra “NOITE ESCURA”, lembrar-se-á dessa fase mais profunda e questionadora no cárcere de Toledo.
“… O que, porém, mais faz penar esta alma angustiada, é o claro conhecimento, a seu parecer, de que Deus a abandonou, e que, detestando-a, arrojou-a nas trevas. Na verdade, grave e lastimoso sofrimento é para a alma crer que está abandonada por Deus. Com efeito, quando verdadeiramente a contemplação purificadora aperta alma, esta sente as sombras e gemidos da morte, e as dores do inferno, de modo vivíssimo, pois se sente sem Deus, castigada e abandonada, e indigna dele que dela está enfadado. Todo este sofrimento experimenta aqui a alma, e ainda mais, porque lhe parece que assim será para sempre.
Em agosto de 1578, expressa ao superior do convento que viera visitá-lo o desejo de celebrar a missa no dia seguinte, festa da Assunção de Nossa Senhora. O superior recusa, dizendo: “Não, em meus dias.” Mas Nossa Senhora diz, SIM e lhe pede paciência porque suas provas logo acabarão. De fato, o novo carcereiro se compadece de seu sofrimento e o atenua como pode. Facilita a sua fuga e provavelmente na oitava da Assunção de Maria, ele sai do cárcere e se refugia no convento das carmelitas.
Após a sua saída do cárcere, a situação dos descalços é dramática, a reforma ameaçada de supressão. Em Almodóvar, São João com outros descalços se reúnem num Capítulo, estando no centro dos debates a separação definitiva dos Calçados. Para consegui-la decidem enviar a Roma uma comissão. Enquanto isso, o novo Núncio Apostólico Mons. Sega conhece os Descalços pelo o que lhe falam os padres Calçados. Para ele os Descalços são um grupo de homens rebeldes, indisciplinados e desobedientes. Assim, quando estes se aproximam para esclarecer os mal-entendidos ouvem somente insultos, ameaças e excomunhões. Nem Madre Teresa escapa da sua fúria. Ele a define como “mulher inquieta, andarilha, desobediente e contumaz que sob a aparência de religião, inventa doutrinas errôneas”. Somente anos depois com a intervenção do rei Felipe II, que lhe diz com franqueza: “Estou a par da oposição que os Calçados fazem contra os descalços, mas esta atitude me parece suspeita, sendo contra gente que vive uma vida rigorosa e perfeita. Aconselho-vos a favorecer a virtude porque me é dito que vós não ajudais os Descalços”. Mons. Sega começa a duvidar e ajuda na separação.
Terminado o Capítulo de Almodóvar, S. João é eleito superior do Convento do Calvário para ficar mais livre das perseguições dos Calçados. No caminho para esse convento, pára em Beas e é recebido pela priora do , Madre Ana de Jesus amiga e colaboradora de Santa Teresa. É a ela que ele dedica o CÂNTICO ESPIRITUAL e ela será fundadora dos conventos de Granada e Madri. Em Beas acontece um momento muito singelo e bonito de S. João da Cruz assistido pelas monjas. Ele está magérrimo, esgotado, falando com dificuldade. As religiosas se empenham em reconfortar o visitante e cantam para ele:
“QUEM NÃO PROVOU AMARGURAS
NO HUMANO VALE DA DOR,
NADA ENTENDE DE DOÇURAS,
DESCONHECE O QUE É O AMOR:
AMARGURAS SÃO O MANTO DOS QUE AMAM COM ARDOR”.
S. João se enternece, recorda a escura prisão de Toledo, revive os momentos de dor, privações sofridas por Deus, pensa nas graças recebidas justamente nesse momento, e não podendo resistir à emoção, com uma mão segura na grade e com a outra faz sinal para cessar. Fica em êxtase por 1 hora. Quando volta a si diz às monjas que não se espantem porque durante a prisão recebeu muitas luzes no que diz respeito ao mistério da cruz e não pôde, escutando o canto, evitar o arrebatamento.
A partir de 1585, começa uma série de viagens e responsabilidades até ser eleito em 1588 no Capítulo, conselheiro e prior de Segóvia. Durante o seu priorado a casa é escolhida como sede de Governo definido como “A CONSULTA”. Uma das primeiras preocupações do novo prior é a de ampliar a casa; com ele se unindo aos operários para fazer às vezes de pedreiro. Ao padre João Evangelista que lhe diz: “Deus meu, nosso Padre, quanto gozo Vossa Reverência acha em meio à cal e às pedras!”, o santo lhe responde: “Não se admire, filho, porque tenho menos ocasião de queda tratando com elas do que com os homens”. No terreno há uma pequena gruta que frei João freqüenta com assiduidade para recuperar o tempo empregado no expediente das coisas não só da casa, mas também de toda a província. Muitas vezes é encontrado nos seus arroubos, mas não deixa de cumprir com exatidão e responsabilidade os seus deveres. No CÂNTICO 28, 2-3, joga luz para defender os que estão imersos em Deus:
“Enquanto a alma não chega ao perfeito estado de união de amor, convém exercitar-se no amor tanto na vida ativa como na vida contemplativa; mas quando a ele chega, não lhe é mais oportuno ocupar-se em obras e exercícios exteriores -, sejam mesmo de grande serviço do Senhor, que possam no mínimo impedir aquela permanência de amor em Deus. Na verdade, é mais precioso diante dele e da alma um pouquinho desse puro amor, e de maior proveito para a Igreja, embora pareça nada fazer a alma, do que todas as demais obras juntas”. Afinal de contas, é este amor o fim para o qual fomos criados. Considerem aqui os que são muito ativos, e pensam abarcar o mundo com suas pregações e obras exteriores: bem maior proveito fariam à Igreja, e maior satisfação fariam a Deus- além do bom exemplo que proporcionariam de si mesmos- se gastassem ao menos metade do tempo empregado nessas boas obras em permanecer com Deus na oração, embora não tivessem atingido grau tão elevado como esta alma. Muito mais haviam de fazer, não há dúvida, e com menor trabalho, numa só obra, então, do que em mil, pelo merecimento de sua oração na qual teriam adquirido forças espirituais. Do contrário tudo é martelar, fazendo pouco mais que nada, e até prejuízo.”
Em 1591, ano de sua morte, participa em Madri do Capítulo Geral dos Descalços. Ao saudar as carmelitas, a priora Madre Maria da Encarnação, exclama sem poder conter a alegria: “Padre, quem sabe se Vossa Reverência não sairá provincial desta província!” Frei João que por iluminação interior previu a sua humilhação, responde com a calma de sempre: “Serei lançado a um canto, como um trapo velho de cozinha”. E isto se confirma. Do Capítulo, frei João sai sem ter sido eleito para nenhum ofício. O primeiro Descalço compreende que se deseja afasta-lo porque é a última testemunha fiel de um estilo de vida pobre, penitente e retirada que não agrada a todos. Sua presença é tida como impedimento. Sua palavra no Capítulo foi clara e firme. Testemunha da luz: defendeu as monjas do perigo do abandono e das modificações de suas constituições, tomou a defesa do Pe. Graciano da ameaça de expulsão. Ao Pe. Dória, vigário Geral, não agradam as intervenções de frei João que obstaculizam seus planos de expulsar da ordem o Pe. Graciano. Por isso decide livrar-se dele. É mandado à solidão de La Peñuela. Frei João, então, não serve mais aos religiosos da Reforma. O primeiro Descalço, que para permanecer fiel ao ideal teresiana sofreu até ao heroísmo todo gênero de humilhações, é posto de lado. Sua presença é incômoda. Os seus o afastam como elemento suspeito, perigoso, nocivo. É alguém que deve ser posto em silêncio, que deve ser esquecido por todos. Ele escreve à Madre Maria da Encarnação: “… Quanto ao que me diz respeito, filha, não fique penalizada, porque a mim nenhuma pena dá. Não pense outra coisa senão que tudo é ordenado por Deus. E onde não há amor, ponha amor e colherá amor”.
Em La Peñuela livre dos cargos de responsabilidade, dedica-se a Deus plenamente. Busca-o na solidão, experimenta-o presente na contemplação, frui dele em elevada e pura atividade de amor. A calma do lugar, o silêncio, a natureza, os pássaros tudo o chama às realidades interiores, o mergulham nos mistérios de Deus. Antes do amanhecer vai em meio às árvores para rezar. Na cela dedica-se à oração, a noite inteira passa no jardim do convento em oração.
Aqui revê sua última obra “CHAMA VIVA DE AMOR”. Abordando, aqui o que falou no Cântico Espiritual, do mais alto grau de perfeição a que a alma pode chegar nesta vida, ou seja, a transformação em Deus, sendo o amor mais qualificado e perfeito. À alma que se exercita no amor “acontece como à lenha quando dela se apodera o fogo, transformando-a em si pela penetração de suas chamas: embora já esteja feita uma só coisa com o fogo, em se tornando este mais vivo, fica a lenha muito mais incandescente e inflamada, a ponto de lançar de si centelhas e chamas”.
Enquanto mergulha no mistério da inabitação da Santíssima Trindade, expressa na sua obra da Viva Chama e frui tão bem da solidão de La Peñuela, o Pe. Diogo evangelista eleito definidor no Capítulo de Madri, e que fora repreendido por frei João pelo excessivo apostolado em prejuízo da observância regular e da oração; busca ocasião para vingar-se. É encarregado pelo definitório de completar a coleta de informações que devem servir para levar à expulsão da ordem do Pe. Jerônimo Graciano e aproveita sem o conhecimento do definitório para envolver nesta sanção frei João.
Muitos desejam que ele se defenda. Mas ele escolhe o silêncio e a oração como armas de defesa. Não falou dos perseguidores quando estava encarcerado, agora, é que não falará mesmo. O pe. Diogo vai de mosteiro em mosteiro imprecando contra frei João e exigindo declarações de acusação contra ele. Mesmo após a morte de S. João ele diz: “Se não estivesse morto, ter-lhe-ia tirado o hábito e não teria morrido na ordem”.
Em La Peñuela, frei João começa a sentir sintomas de mal-estar devido a uma inflamação na perna. Quando esta se torna grave, o prior preocupado propõe a ele Baeza ou Úbeda para tratamento. Ele podia escolher Baeza, convento que ele fundou e onde é estimado inclusive pelo prior que é seu grande admirador, mas escolhe Úbeda querendo dar mais um gesto de fidelidade à cruz. Ele sofre fisicamente com essa chaga na perna, mas a dor no coração devido ao ressentimento e ao ódio manifestado entre seus irmãos é muito maior. Sofre mais que na carne.
Chegado à Úbeda é recebido com manifestações de afeto e estima pelos religiosos onde revê seus filhos espirituais. Todos lhe querem bem e o recebem como bênção de Deus para a comunidade. O único a recebê-lo com visível frieza é o prior, Pe. Francisco Crisóstomo. Como Pe. Diogo Evangelista, ele também não esqueceu as repreensões de frei João pelo excessivo empenho no apostolado, com prejuízo da vida espiritual. Aproveita a ocasião para humilhá-lo indicando a cela “mais pobre e estreita do convento, arrumada apenas com um miserável leito e um Cristo”. Depois quando frei João se encontra gravemente enfermo, não mo dispensa de participar dos atos comunitários, e o repreende asperamente diante de todos, um dia em que o enfermo se desculpou de não poder descer ao refeitório.Proíbe os religiosos de visitá-lo e quando entra em sua cela é somente para humilhá-lo. Certamente recordou nesse período o que outrora escrevera às monjas de Beas: “A primeira cautela é que compreendas que não viestes para o convento senão para que todos te instruam e exercitem. Convém pensar que todos os que se encontram no convento são agentes encarregados de te exercitar, como o são na realidade: que uns te hão de aperfeiçoar por palavras, outros, por obras, outros pensando mal de ti e que a tudo hás de estar sujeito, como a estátua está ao que a lavra, e pinta e doura”. O momento é mais do que propício para estas reflexões; elas têm dupla finalidade: ver os acontecimentos a mão de Deus que tudo permite para o nosso bem e alimentar a paciência, virtude essencial a quem sofre injustiças.
Suas chagas começam a supurar e quem delas faz uso como remédio, comprova a cura. Entre as pessoas está o médico que vem medicar o enfermo e leva consigo as bandagens que cobriam as feridas. S. João vive o mistério da cruz e não lamenta vendo as chagas se propagando pelo seu corpo. No Cântico não vê outro caminho para atingir a transformação em Deus senão o da cruz: “A alma verdadeiramente desejosa da sabedoria deseja primeiro deveras entrar mais adentro na espessura da cruz, que é o caminho da vida pelo qual poucos entram! Com efeito, desejar entrar na espessura da sabedoria, riqueza e regalos de Deus, é de todos; mas desejar entrar na espessura de trabalhos e de dores pelo Filho de Deus é de poucos.
O sofrimento apesar de atroz o conduz à contemplação. Os irmãos que vão visitá-lo notam, muitas vezes, ele ausente como que recolhido em Deus, em contemplação. Algumas vezes pede para ficar sozinho. O próprio médico o encontra como que atraído por uma visão de beleza infinita e só com muito esforço volta a si. O médico limita-se a dizer: “Deixemos o santo rezar. Quando voltar a nós, viremos medicá-lo.
Quando ele começa a perguntar insistentemente que dia é hoje? Que horas são? Já conhece a data de sua morte e sabe também a hora. No dia 13 de dezembro de 1591 pede para chamarem o prior e lhe pede a caridade de dar-lhe o hábito que veste para ser sepultado, pois, de seu não possui nada. Pede-lhe perdão por todas as faltas e dificuldade que com a doença causou à comunidade. E por fim, pede-lhe a bênção. O prior lhe dá e convertido chora, pedindo desculpas porque devido à pobreza do convento não pode fazer mais para aliviar seus sofrimentos.
No dia 14, pergunta como de costume o dia e a hora e como repete a pergunta os religiosos curiosos perguntam o porquê. Frei João responde: “Glória a Deus! Devo cantar matinas no paraíso!”
Quando o sino toca à hora das matinas, frei João ouvindo-o aperta o crucifixo ao peito, o beija e o frade que o sustenta entre os braços, percebe que expirou vendo sobre o leito “um grande esplendor em forma de círculo. Brilhava como o sol e a lua e as lamparinas que estavam sobre o altar e as duas velas que estavam na cela, pareciam não dar mais luz”.
Na CHAMA VIVA DE AMOR S. João ensina, Ch1, 30: “Convém saber que a morte natural das almas que chegam a este estado (união transformante), embora seja semelhante às outras quanto à própria condição da morte, é, todavia, muito diferente quanto à causa e ao modo; porque se os outros morrem e, conseqüência de enfermidade ou velhice, esses de que tratamos aqui, morrendo efetivamente de doença ou em idade avançada, não é isso,todavia, que lhes tira a vida, e sim algum ímpeto e encontro de amor muito mais subido que os antecedentes, e bem mais poderosos e eficaz, pois consegue romper a tela, e arrebatar a jóia da lama. Assim, a morte de semelhantes almas é suavíssima e dulcíssima, muito mais do que lhes foi a vida inteira; morrem com os mais subidos ímpetos e deliciosos encontros de amor, assemelhando-se ao cisne que canta mais suavemente quando vai morrer. Daí vem a palavra de Davi: Preciosa é diante do senhor a morte de seus santos (Sl 115,15)”.