Solenidade Imaculada Conceição de Nossa Senhora

Solenidade Imaculada Conceição de Nossa Senhora

A IMACULADA CONCEIÇÃO DE MARIA

08 de dezembro 



 O artigo expõe o significado do
dogma: Maria não herdou a carência da graça 
santificante que os primeiros pais perderam ao pecar; desde a
sua conceição no seio de Santa Ana, ela foi portadora da graça – o que 
equivale 
a
dizer que foi imaculada em sua conceição.
Esta verdade foi controvertida pelos
teólogos, pois julgavam que contradizia ao primado de Cristo Redentor de toda a
humanidade. O impasse foi resolvido por obra de Duns 
Scotus (+1308), segundo o qual Maria contraiu o débito do
pecado original, como todas as criaturas humanas, mas não contraiu as
consequências desse débito, porque lhe foram antecipadamente aplicados os
méritos de Cristo. Esta fórmula permitiu que a devoção à Imaculada se
propagasse amplamente entre os fiéis a ponto de pedirem ao Papa Pio IX a
definição do dogma – o que ocorreu aos 08/12/1854.
Nestes meses em que a Igreja se prepara para
celebrar os 150 anos da definição do dogma da Imaculada Conceição de Maria(referente ao ano da publicação 2004) ,
está sendo propagado um panfleto polêmico: os católicos teriam começado a crer
oficialmente no dia 8/12/1854 que Maria foi concebida sem pecado, embora
grandes teólogos da Idade Média tenham rejeitado essa proposição. Tal impresso
desfigura a verdade e suscita dúvidas na mente dos leitores; considera também o
dogma da Assunção Corporal de Maria, que é uma consequência da Imaculada
Conceição. Se Maria não contraiu o pecado, não foi sujeita ao império da morte
ou à decomposição do seu corpo.





Observação preliminar
A fé é a resposta do ser humano a Deus que fala.
Tal resposta não é meramente individual, mas é comunitária. Isto quer dizer que
só podemos compreender todas as implicações e consequências contidas na Palavra
de Deus revelada, se nos colocamos dentro da comunidade de fé que é a Igreja. A
Igreja, como comunhão ou como Corpo de Cristo (cf. Cl 1, 24; 1Cor 12, 12-27),
não pode errar na fé nem se pode desviar da Palavra trazida por Cristo e
comunicada aos Apóstolos (cf. Mt 28, 18-20).
Note-se outrossim que a Revelação das verdades de fé foi completa em
Jesus Cristo e nos Apóstolos, mas os cristãos não perceberam
 todo o seu alcance de uma
só 
vez. Muitas
coisas feitas por Jesus não foram relatadas nos Evangelhos (cf. Jo 20, 30s; 21,
24s), de modo que a Tradição escrita (a Bíblia) e a Tradição oral no decorrer
dos séculos se foram completando até a Igreja chegar à plena intuição das
proposições reveladas por Jesus Cristo. É o que nos diz o 
Concílio Vaticano
II:
“A Tradição oriunda dos Apóstolos progride na
Igreja sob a assistência do Espírito Santo. Com efeito, cresce a compreensão
tanto das coisas como das palavras transmitidas, seja pela contemplação e o
estudo dos que creem…, seja pela íntima compreensão que experimentam das
coisas espirituais, seja pela pregação daqueles que, com a sucessão do 
episcopado, receberam
o carisma seguro da verdade. A Igreja, portanto, no decorrer dos séculos, tende
continuamente para a plenitude da verdade divina, até que as palavras de Deus
nela cheguem à consumação” (Constituição Dei Verbum n3 8).
Com efeito, a Revelação foi formulada em palavras
humanas a homens limitados. Por isto a percepção de tudo quanto nela está
contido vai-se realizando na medida em que vão caindo os obstáculos das
limitações humanas que dificultam a compreensão. Foi o que se deu com os dois
artigos de fé concernentes à Imaculada Conceição e à Assunção.
A fé da Igreja reconheceu, desde os tempos dos
Apóstolos, o papel muito especial desempenhado pela Virgem SS. na Redenção dos
homens. A expressão “cheia de
graça” (kecharitoméne) achava-se no Evangelho de Lucas desde o
século I (cf. Lc 1, 28). Mas as circunstâncias históricas não permitiram
perceber com precisão todo o alcance desta proposição de fé. O povo cristão,
como comunidade de fé, foi intuindo esse alcance com clareza crescente e sob a
luz do Espírito Santo. Os teólogos procederam mais lentamente, de modo que,
enquanto o “senso dos fiéis” afirmava a Imaculada Conceição, a
teologia hesitou durante séculos, e mais vagarosamente chegou à formulação
exata. Em 1854 o Papa Pio IX não fez senão assumir e pronunciar solenemente o
que já estava na consciência dos simples fiéis e dos teólogos ou mesmo na fé da
Igreja dos Apóstolos. Escreve muito sabiamente o teólogo 
Karl Rahner:
“A Igreja e o magistério sabem que não
transmitem uma revelação de Deus que acontece aqui e agora pela primeira vez;
sabem que não são profetas, mas, sim, uma instância cuja função consiste
unicamente em conservar, transmitir e interpretar a revelação de Deus ocorrida
em Jesus Cristo num preciso momento do passado” 
(Reflexiones en torno a la evolución del dogma p.
13).
Assim expostos os princípios que esclarecem a
história, consideramos as principais dificuldades que a teologia encontrou para
formular o dogma da Imaculada Conceição.


I. IMACULADA
CONCEIÇÃO
1. Dificuldades
para a compreensão
Embora os antigos estivessem
conscientes de que Maria sempre viveu na graça de Deus, alguns entraves
obscureciam a intuição das 
consequências desta premissa. – Quais seriam?
1.1. A santidade singular de Jesus
Nos primeiros séculos, o
pensamento cristão se voltou para a absoluta santidade de Jesus, condição para
que realizasse sua obra salvífica. A santidade e a impecabilidade de Jesus
foram deduzidas da sua união hipostática; o eu de Cristo era o da
segunda Pessoa da SS. Trindade; como tal, não podia pecar. Em Maria, porém, não
houve união hipostática…
1.2. A universalidade da Redenção
Não há graça nem salvação que
não venham de Jesus Cristo. Todos são pecadores e foram remidos por
Cristo. 
– Ora,
se Maria foi isenta do pecado original, ela nada deve a Cristo; está fora do
plano salvífico do Pai.
1.3. O conceito de pecado original originado
Todos admitiam que o pecado
dos primeiros pais acarretou a morte e graves 
consequências para o gênero humano, como nota S. Paulo em
Rm 
5, 12-19; 7, 7-24. Todavia nem todos entendiam do mesmo modo essas consequências. Alguns teólogos julgavam ser a
morte física sem mais; outros, a morte segunda ou a condenação definitiva;
outros, a cobiça e as paixões desregradas; outros, a deterioração do cadáver no
sepulcro; outros ainda, o aniquilamento total do indivíduo mediante a morte…
Enquanto perduravam essas hesitações, era difícil definir de que “pecado
original” Maria fora isenta.
1.4. Um problema biológico
Os antigos e medievais
julgavam que a semente vital masculina era o único princípio 
ativo na conceição de um novo ser
humano. O útero da mulher seria um recipiente passivo, uma “incubadora
biológica” para o desenvolvimento da semente masculina. O pecado de Adão
se transmitiria por hereditariedade biológica ou pela semente masculina. 
– Este princípio explicava bem
por que Jesus fora isento de pecado original; não era filho de S. José no plano
biológico. Maria, porém, nascera da união matrimonial de S. Joaquim e Sta. Ana;
por conseguinte, não podia ter nascido sem o pecado original.
1.5. O momento da infusão da alma humana
Era problema muito antigo a
questão: quando começa a existir um ser humano? 
– Desde o momento da conceição
ou da fecundação do óvulo pelo espermatozóide? Ou após certo intervalo
(quarenta dias para os meninos, oitenta dias para as meninas)? 
– Prevalecia na antiguidade e na Idade Média esta segunda
teoria; em 
consequência, perguntava-se: como falar da conceição
imaculada de Maria? Quem não tem alma humana (antes do 40s ou
do 80s dia) não é sujeito de pecado e, por isto, não se pode
dizer que foi preservado do pecado original em sua conceição.
Foram estas as grandes
dificuldades que obscureceram os horizontes dos teólogos que abordavam o tema
da isenção de todo pecado em Maria. Vejamos agora as etapas da reflexão teológica
sobre o assunto.
2. A
história da reflexão teológica
1. O
primeiro testemunho a notar é o do Protoevangelho de Tiago (VI 
2), que data do século II. Segundo
este texto, um anjo terá dito a Santa Ana, estéril: “Conceberás e darás à
luz; em toda a terra, se falará da tua descendência”.
Pouco depois S. Joaquim, que
estava no deserto, recebeu aí a mensagem de outro anjo, que lhe disse:
“Joaquim, o Senhor Deus ouviu tua oração. Desce daí, pois tua esposa
Ana concebeu em seu seio”. (1)
(1) Verdade é que alguns
manuscritos têm: ‘Tua esposa… conceberá”, o que talvez não seja a forma
originária (N.d.R.).
O pretérito significa que Ana
concebeu milagrosamente sua filha Maria SS.. Esta notícia não é tida como
fidedigna; mas exprime no século II a consciência, dos cristãos, de que a
conceição de Maria foi diferente da dos demais seres humanos.
2.  Até o século V não há testemunho explícito da imaculada conceição, mas
os escritores da Igreja se comprazem em louvar Maria como santa e pura,
exprimindo assim a fé do povo de Deus.
3.  Passemos à época do Pelagianismo (séc. V). Este afirmava a capacidade
natural do ser humano para praticar o bem, sem necessitar da graça de Deus. Foi
então que Pelágio (+
422) escreveu a S. Agostinho: “A piedade impõe que reconheçamos Maria
sem pecado”. O S. Doutor aceitou a observação: quando se trata de pecado,
Maria está fora de cogitação. Todavia entendia isto de modo diverso do
pelagianismo: Maria não teve pecado por graça de Deus, não por santidade da
natureza humana como tal. S. Agostinho não podia chegar à noção de imaculada
conceição, porque julgava que o pecado dos primeiros pais se transmitia pela
semente vital do homem; além do quê, a universalidade da Redenção lho impedia.
Diante disto, o pelagiano Juliano de Eclano (+
454) lhe objetava
que Agostinho entregava Maria ao diabo. O S. Bispo de Hipona insurgiu-se contra
esta acusação, mas de maneira insuficiente, ao dizer: “Não entregamos
Maria ao diabo em virtude do seu nascimento, pois este é redimido pela graça do
renascer” (Opus Imperfectum adversus Julianum 4, 122).
Estas palavras de S. Agostinho exerceram grande
influência na posteridade; pareciam negar a imaculada conceição. Além do quê,
esta parecia professada pela literatura apócrifa e pelos 
pelagianos, de
modo que a teologia subsequente se mostrou pouco propensa a essa
doutrina. 
Entrementes a
piedade popular não deixava de professar a santidade de Maria desde a sua
conceição.
4. No século VII os orientais, no século VIII os
ocidentais começaram a celebrar a festa 
litúrgica da Conceição de Maria (no Ocidente, a 8
de dezembro, nove meses antes da festa da 
Natividade de Maria celebrada a 8 de setembro).
Na Grã-Bretanha (séc. X) celebrava-se
a Imaculada Conceição. Não se sabe bem qual o objeto preciso dessa
festa, pois as dificuldades de ordem teológica e biológica já citadas 
obscureciam as
noções. Como quer que seja, a piedade popular se manifestava sempre do mesmo
modo, à revelia de teólogos como S. Bernardo (+1153).
5. Nos séculos XI e XII S. Anselmo de Cantuária
(1033-1109) deu um passo importante na trajetória da doutrina em foco. Ao passo
que S. Agostinho considerava o pecado original das crianças como verdadeiro
pecado, S. Anselmo mostrou que não pode ser pecado em sentido próprio, pois as
crianças no seio materno não têm uso da razão. Por conseguinte, segundo esse
monge, o pecado original (originado) consiste em uma ausência – ausência da
graça 
santificante e
dos dons originais que os primeiros pais perderam e não puderam transmitir;
essa ausência não é castigo de Deus, mas é simplesmente a consequência da
solidariedade que existe entre filhos e pais; os homens recebem dos primeiros
pais a natureza humana despojada da graça, tal como os primeiros pais a tinham
depois do pecado de desobediência.
Esta noção de pecado original originado tornou-se
definitiva na teologia, e aplainou o caminho para se entender posteriormente a
imaculada conceição de Maria.
6. No século XII salientou-se o monge Edmero (+1134)
com seu Tractatus de Conceptione 
Sanctae Mariae. Verifica o contraste entre a devoção
dos simples fiéis e a ciência dos teólogos, que se opunham à festa da
Conceição; optou pela atitude do povo simples, a quem Deus revela seus
mistérios, recorrendo à imagem da castanha. “Não podia Deus 
conceder a um corpo humano a
graça de permanecer livre de toda pontada de espinhos, ainda que tenha sido
concebido em meio aos aguiIhões do pecado? É claro que o podia e queria; se o
quis, Ele o fez” (ob. cit. 
12). É de lembrar que a castanha
sai com a sua casca lisa de um invólucro cheio de espinhos.
Edmero muito se aproximou da
solução do problema, mas não chegou à noção de “preservação” (Maria
foi preservada do pecado original).
No século XIII S. Alberto
Magno (+
1280) e S. Tomás de Aquino (+1274) negaram a imaculada conceição, porque não viam como a conciliar com a
universalidade da Redenção. Admitiam, porém, que Maria tenha sido purificada do
pecado no seio materno, logo após a infusão da alma humana no embrião.
7. Finalmente
no século XIV interveio o franciscano João Duns Scotus (+
1308). Este propôs o conceito de
Redenção preventiva, em virtude da qual Maria foi preservada de todo pecado
graças aos méritos de Jesus Cristo (e em previsão destes). Maria, como
descendente dos primeiros pais, contraiu o débito do pecado original, mas foi
dispensada das 
consequências desse débito. Duns Scotus podia assim afirmar que a imaculada conceição
de Maria não constitui uma 
exceção à obra salvífica de Cristo,
mas, ao contrário, manifesta por excelência a eficácia da obra redentora de
Cristo. Eis as palavras de Duns Scotus:
“Mais augusto benefício é
preservar do mal do que permitir a queda no mal, ainda que com a intenção de
livrar do mal. Se Cristo mereceu, para muitas almas, a graça e a glória na
qualidade de Mediador e Salvador, por que não pôde ter merecido a inocência
para alguma alma?” (De Immaculata Conceptione B. Virginis
Mariae, qu.1)
Scotus acrescenta pouco adiante: Deus não está condicionado pelo tempo;
Ele pode ter aplicado antes de Cristo os méritos que Cristo adquiriria pela sua
morte e ressurreição.
Concretamente, a posição
assumida por Scotus quer dizer que Maria não nasceu sem a graça santificante,
mas 
teve-a desde o início da sua existência no seio materno; quanto aos dons
paradisíacos, não se pode dizer o mesmo.
A explicação de Scotus foi
decisiva. Os franciscanos a assumiram, contribuindo para que mais e mais fosse
aceita pelos teólogos. Prova disto é o ocorrido no Concílio de 
Basiléia em 1439: o cônego João de Romiroy
propôs que os padres conciliares definissem como verdade de fé a Imaculada
Conceição de Maria; isto foi aceito, mas a decisão não logrou resultado, porque
o Concílio deixara de estar em comunhão com a Santa Sé.
Houve ainda resistência à
fórmula de Scotus por parte dos dominicanos, que eram discípulos de S. Tomás de
Aquino; todavia mesmo entre estes 
registraram-se arautos da Imaculada
Conceição.
O Concílio de Trento (1545-1561) não abordou diretamente o tema, mas declarou não ser
sua intenção incluir a Virgem Imaculada dentro da universalidade do pecado
original; cf. Denzinger-Schónmetzer, Enquirídio 
1516
(792) 
ver Collantes, A Fé Católica
(FC) 
3071. Mandou a propósito observar as Constituições do Papa Sixto IV. Este,
mediante duas Bulas 
(1477 1482), proibiu que os teólogos, ao discordarem entre si sobre a Imaculada
Conceição, se acusassem mutuamente de hereges e 
adotou oficialmente em Roma a festa
da Imaculada Conceição.
8.  No século XVII, o Santo Ofício (encarregado das questões de fé em Roma),
sob a orientação dos dominicanos seguidores de S. Tomás de Aquino, desaprovava
a expressão “Imaculada Conceição da Virgem” e preferia que se falasse
da “Conceição da Virgem Imaculada”. Todavia em 
1661 o Papa Alexandre VII, mediante
a Bula Sollicitudo, 
declarou-se em favor da Imaculada Conceição e proibiu qualquer ataque a esta
doutrina; explicitou a formulação do dogma em termos que de certo modo
anteciparam os de Pio IX em 
1854. – O Papa Clemente XI em 1708 estendeu a festa da Imaculada
à Igreja inteira.
9.  Uma vez encerrada a controvérsia, o Papa Pio IX houve por bem mandar
estudar a fundo o assunto em vista de uma eventual definição dogmática. Para
tanto constituiu uma Comissão em 
1848. Em 1849 publicou a encíclica Ubi
primum, pela qual consultava os bispos do mundo inteiro sobre dois pontos:
a Igreja, esparsa pelo orbe, acreditava que a doutrina da Imaculada Conceição
era revelada por Deus? 
– Era conveniente declarar essa proposição mediante solene pronunciamento
do magistério? 
– Dos 603 bispos residenciais (que
falavam como pastores diocesanos), 
546 responderam positivamente às
duas perguntas. Desta maneira era evidente a fé da Igreja. (1)
(1) Notemos que nãó se tratava
de uma “votação democrática” pois esta não constitui critério em
matéria de teologia. Mas 
tratava-se de uma consulta para saber se a Igreja, como depositária da doutrina
revelada, sob a guia do Espírito Santo, considerava como artigo de fé a
doutrina da Imaculada. 
– Neste caso, não há votação, mas expressão dos pastores, que traduzem a
fé de suas comunidades.
A bula definitória passou por
oito 
redações. Finalmente, aos 8/12/ 1854 Pio IX proferiu a definição dogmática:
“Declaramos, pronunciamos
e definimos que a doutrina que ensina que a 
Bem-aventurada Virgem Maria, no primeiro
instante de sua conceição, por singular graça e privilégio de Deus 
todo-poderoso e em vista dos méritos de
Jesus Cristo, Salvador do 
gênero humano, foi preservada imune de toda mancha da culpa original, é
revelada por Deus e, por isto, deve ser professada com fé firme e constante por
todos os fiéis” (Bula Ineffabilis Deus).


Algumas reflexões se fazem
oportunas:
1) O
texto da Bula não diz se a doutrina em foco foi explícita ou implicitamente
revelada. 
Depreende-se, porém, dos textos bíblicos adiante citados que se trata de
revelação implícita.
2) A
razão aduzida em favor do privilégio de Maria são “os méritos de Cristo
Salvador do 
gênero humano”. Isto quer dizer que Maria foi remida e pertence à dispensação da graça obtida
por Cristo, muito mais rica do que a graça possuída pelos primeiros pais.
3) “Maria
foi preservada de toda mancha da culpa original”. 
Note-se que nada foi dito a respeito
da questão: Maria terá sido preservada também de todas as 
consequências do pecado de Adão, como são a
dor e a morte? Se Jesus mesmo não quis ser isento destas, Maria também não o
foi. Também nada foi dito sobre a concupiscência de Maria: terá sido preservada
das tendências desregradas que existem nos demais filhos de Adão em 
consequência do pecado? Embora muitas
petições tenham sido levadas a Pio IX no sentido de uma tomada de posição a
respeito, o Papa não quis 
pronunciar-se.
Resta, porém, que Maria
contraiu o débito do pecado, mas não o pecado mesmo. Esse débito não
constitui mancha ou sombra alguma. Com efeito: se alguém impede outra pessoa de
cair num pântano, essa pessoa não é manchada pelo fato de que teria caído se
não fosse a intervenção alheia.
Examinemos agora:
4. Fundamentação
Bíblica
Antes do mais, observamos que
não existe na S. Escritura algum texto que fale explicitamente da Imaculada
Conceição de Maria. ([1])
Apesar disto, a Igreja
encontrou, no âmago das verdades reveladas, os fundamentos de tal doutrina. Eis
os textos citados pela Bula de Pio IX:
1)  Lc 1, 28: Maria foi kecharitoméne (= foi e permaneceu repleta do
favor divino). 
– O
anjo não disse “Ave Maria”, mas 
“Alegra-te, kecharitoméne”, como
se este fosse o nome próprio da Virgem. É oportuno aproximar este
texto do único outro texto do Novo Testamento em que ocorre o mesmo
verbo: “Bendito seja Deus… que nos agraciou (echaritosan) no
Amado” (Ef 
1, 3.6). Maria vem a ser a primeira e a mais enriquecida de todas as criaturas.
Esta plenitude de graça está ligada à vocação de Maria para ser
Mãe do Filho de Deus feito homem. O pecado, que é sempre
um Não dito a Deus, não cabe na existência de uma mulher que, por
desígnio de Pai, é chamada a colaborar na vitória sobre o pecado.
2)  Gn 3, 15: O Senhor promete inimizade entre a mulher e a serpente. E certo que,
tomado ao pé da letra, o texto se refere à única mulher do contexto, ou seja, a
Eva. Todavia a mulher que, por excelência, deu à luz a prole vencedora da
serpente, é Maria SS. 
– Em Maria se torna pleno o sentido de mulher ou
de Eva 
(= Mãe
dos vivos) de que fala Gn 
3, 15. O texto também não fala explicitamente de Jesus Cristo, mas refere-se à perene inimizade que na
história existe entre a linhagem dos bons e os que seguem o Tentador. São
Paulo, porém, descobriu no primeiro Adão o tipo ou a figura do segundo Adão
(cf. Rm 
5, 14) e a tradição patrística descobriu em Eva o tipo ou a figura da segunda
Eva 
(= Maria).
Esta tinha de ser santa e alheia ao pecado para resgatar a primeira Eva, que se
entregara à palavra do tentador e ao pecado; ela está em total inimizade com o
sedutor e o pecado.
3)  Lc 1, 31: “conceberás em teu seio”. Maria tornou-se, em grau vivo e pleno, o que
eram a tenda do Senhor no deserto e o Santo dos Santos no templo de
Jerusalém. Maria veio a ser também, em termos excelentes, aquilo que era
“a cidade de Jerusalém, o monte Sion do Santo de Israel; essa morada de Deus
inanimada feita de pedras devia ser pura para que o Senhor Deus nos tempos
messiânicos nela habitasse” (cf. Ez 
37,
23.27). – 
Pois bem; mais importante do
que qualquer santuário inerte é o santuário vivo de Maria SS.. Em 
consequência, esta devia ser totalmente
pura, isenta de qualquer mancha de pecado. Se o santuário de Maria não foi
santo desde o início de sua existência, ele foi um santuário já possuído e
habitado por outro Senhor (pelo Príncipe deste mundo; cf. Jo 
12,
31); 
o Filho de Deus não teria podido
reconhecer nele a santidade e a beleza próprias de sua casa; contentar-se-ia
com ser o “segundo” Senhor do seu próprio Templo.
4)  O povo de
Israel, esposa do Senhor Deus. Ao pé do monte Sinai o povo de Israel foi
chamado a concluir uma Aliança com o Senhor,
 que o tirara do Egito. dia
em 
que isto se deu,
foi 
considerado dia de núpcias entre Deus seu povo. Os rabinos
muito 
refletiam sobre tal acontecimento: afirmavam que o Senhor havia preparado Israel
como esposa sem mancha para dizer o seu Sim à Lei de Deus. Eis
algumas das 
estórias dos mestres de Israel que ilustram este modo de pensar:
Fílon de Alexandria (+50 d.C.) ensina que os judeus
no 
Egito se haviam tornado réus de transgressões (cf. Ezequiel20, 7s;23, 3.8.19.27). Por conseguinte, deviam ser
purificados logo que saíssem da terra da escravidão; isto se faria
gradativamente até sanar todas as chagas assim adquiridas. Ora esta purificação
se deu no deserto, antes de chegarem ao monte Sinai. Uma vez lavados de suas
faltas, puderam acampar ao pé da santa montanha, trazendo vestes de uma
brancura incomparável. Nessa alvura Fílon via o reflexo das mentes dos judeus
renovadas (cf. De Decálogo 
10.45).
O rabino Simeão bem Jochai (+150 d.C.) dizia que Israel, tendo
saído do 
Egito, assemelhava-se ao filho de um rei que se recupera de grave doença. Não poderia ir à
escola se não tivesse comido e bebido durante cerca de três meses. Por isto
Deus lhe propiciou água da rocha, maná e codornizes (cf. Êxodo 
16,
1-36; 17, 1-7). 
E no terceiro mês
após a saída do 
Egito, o Senhor lhe entregou a Lei (cf. Êxodo 19,
1; 
Ct Rabbath 2,
5.1). 
O mesmo rabino, segundo se
conta, afirmava que ao pé do Sinai não havia algum israelita trôpego, surdo,
mudo ou cego. A 
assembleia era semelhante a uma esposa sem mancha, à qual o Esposo exclamava:
“Como és toda bela, amiga minha! Em ti não há mancha alguma”
(Ct 
4, 7; cf. CtRabbath, 4, 7.1). “
Mais: o Talmud da Babilónia afirmava:
“Quando a serpente foi ter com Eva, 
injetou-lhe a concupiscência; mas, quando
os israelitas acamparam ao pé do Sinai, cessou a incontinência deles
(Shabbat 
145 b). Naquele dia o mundo parecia ter retornado à inocência original.
Israel era a mais bela entre as nações e 
mostrava-se solícito para com a Lei do
Senhor (Me kilta do Rabino Ismael, Jitro, Bachodesh a Ex 
20,
2). 
Israel era a esposa que
procedia do deserto toda pura, abraçada por seu amado” (Ct 
8, 5[LXX]).
Ora, os Padres da Igreja e os
teólogos fizeram a transposição: o que a sinagoga dizia a respeito de IsraeL
eles o disseram a respeito de Maria. Com outras palavras: assim como Deus
purificou o seu povo de toda culpa e fraqueza, para que estivesse em dignas
condições de proferir o seu Sim às núpcias do Sinai, assim Ele
preservou Maria de toda mancha, a fim de que o Sim da Anunciação
fosse mais belo e alegre. Sem dúvida, porém, a ausência de pecado não dispensou
Maria de viver 
do claro-escuro da
fé; ela teve que crer no mistério da Paixão e Morte de seu Divino Filho.
Outras figuras do A. T.
poderiam ser citadas a partir das obras de teólogos antigos e modernos. Nenhuma
delas constitui um argumento decisivo em prol da Imaculada Conceição de Maria.
Revelam, porém, a fé da Igreja (hierarquia, teólogos e simples fiéis). O
conjunto de explanações baseadas 
direta ou indiretamente no texto bíblico é eloquente de modo suficiente para
demonstrar que no bojo da Igreja como Mãe e Mestra estava latente a crença na
Imaculada Conceição de Maria; esta 
foi-se manifestando aos poucos,
através de altos e baixos, até ser explícita e oficialmente proclamada por Pio
IX em 
1854.
5. Reflexão
teológica
A graça da Imaculada Conceição
não foi um mero ornamento concedido por Deus a Maria, mas há de ser considerada
dentro do mistério da Redenção e da Igreja.
5.1. No contexto da Redenção
É preciso contemplar cada
verdade da fé no conjunto das demais verdades reveladas. Ora 
pode-se dizer que a Imaculada
Conceição possibilitou a Maria uma total entrega à obra de seu Filho em favor
dos homens. Sim; esta entrega total encontraria obstáculo no egoísmo do pecado.
Maria, sendo cheia de graça (ou do amor que a preservava de se fechar em si
mesma e em seus próprios interesses), pôde 
entregar-se plenamente ao plano redentor
do Pai. Pôde abrir seu coração, em nome da humanidade pecadora, à salvação
messiânica que o Pai oferecia ao 
gênero humano. Assim, a conceição
imaculada de Maria foi a preparação, 
arquitetada pelo próprio Espírito Santo,
para tornar possível o Sim generoso da Anunciação. É o que o Concílio
do Vaticano II lembra:
“Maria, filha de Adão,
consentindo na palavra de Deus, foi feita Mãe de Jesus. E abraçando a
vontade salvífica de Deus. com coração pleno, não retida
por algum pecado, 
consagrou-se totalmente como Serva do Senhor à pessoa e obra de seu Filho, servindo
com Ele e sob Ele, por graça de Deus 
Onipotente, ao mistério da Redenção. Por
isto é com razão que os Santos Padres julgam que Deus não se serviu de Maria
como de instrumento passivo, mas afirmam que Maria cooperou para a salvação
humana com livre fé e obediência” 
(Lumen Gentium no 56).
5.2. A graça de Maria, esperança da Igreja
A graça concedida a Maria foi
concedida em favor de todos os homens. O S. Padre João Paulo II desenvolve esta
reflexão: Maria está no centro da inimizade com a serpente antiga, em
solidariedade com todos os seus irmãos:
“Maria fica sendo… o
sinal imutável e inviolável da escolha feita por Deus… Esta escolha é mais
forte do que toda a experiência do mal e do pecado… Na história da humanidade
Maria continua a ser um sinal de esperança segura” (Redemptoris
Mater 
11).
Mais: a graça recebida por
Maria sem mérito próprio da Virgem SS. nos diz que toda a história da
humanidade está sob o signo não da desgraça e da condenação, mas da
misericórdia, mais forte do que o pecado. Se nós caímos sob o domínio do pecado
por fragilidade nossa, não estamos sujeitos, sem remédio, a tal domínio. Somos
as criaturas que Deus desde todo o sempre ama, e que Ele procurou recuperar na
plenitude dos tempos, antes mesmo que alguém o pudesse merecer. O cristão é,
portanto, 
otimista e esperançoso quanto ao sentido da história. Verdade é que Maria
foi preservada do pecado, ao passo que nós
fomos perdoados (ou recebemos o perdão). Todavia, no fundo, 
trata-se da mesma graça divina: é a
Redenção realizada por Cristo. Quando pedimos no Pai-Nosso: “Não nos
deixeis cair em tentação”, rogamos que Ele nos preserve como preservou
Maria.
Assim o dogma da Imaculada
Conceição tem um significado profundo para a cosmovisão do cristão.
Infelizmente, o minimalismo teológico estreita os horizontes e não permite ver
o alcance das grandes verdades da fé. É o que se dá com várias denominações
protestantes, que consideram a maternidade de Maria como um fato meramente
biológico e não levam em conta o seu pleno sentido. Não se pode deixar de
ponderar a Maternidade Divina de Maria e tudo o que a ela se prende, como um
fato salvífico. É neste contexto de salvação do 
gênero humano que está radicado o
dogma da Imaculada Conceição.
Dom Estêvão
Bettencourt (OSB)


 Giovani Carvalho Mendes

Post a Comment