2. Elias na tradição judaica
É do conhecimento geral que o profeta “arrebatado” ao céu ocupa um lugar importante na haggada. Essa ilustra e amplia com elementos legendários, às vezes simplistas, e com considerações teológicas os textos bíblicos relativos à vida terrena de Elias; porém, se detém especialmente em seu arrebatamento e sua atividade celestial, sobre suas aparições na terra como benfeitor dos pobres e amigo dos humildes, como socorredor e libertador dos fiéis em toda situação extrema, como amigo dos sábios e estudiosos da Torah, devido o seu zelo por ela, e finalmente como precursor do Messias.
Quando o anjo da morte apareceu para levar Elias, este se encontrava conversando com Eliseu sobre a Torah. Como não lhe era permitido interromper o estudo [da Torah], Satanás se pôs na espera; porém, num relance, um carro de fogo puxado por cavalos de fogo se interpôs entre Elias e seu discípulo. Elias subiu nele e foi arrebatado ao céu em um turbilhão. Satanás foi então protestar diante de Deus pela não acontecida morte de Elias; porém antes de começar a falar, Deus o preveniu: “Eu criei os céus precisamente para que Elias pudesse subir a eles”. O anjo insistiu e o Eterno permitiu que houvesse uma luta entre Satanás e Elias. O profeta saiu vencedor e pediu a Deus permissão para aniquilar a seu adversário. A permissão não lhe foi dada porque a derrota definitiva de Satanás deverá acontecer no final dos tempos (Zohar hadash Ruth 1, 1; Sepher Elijahu, p. 19).
Esta idéia da translação, inclusive corporal, seguiu sendo a mais comum (cf. Pesiq. 9 [séc. II]). “Se Adão não tivesse pecado, ficaria sempre vivo?”, pergunta-se o rabino Jehuda bar Hai, e ele mesmo responde: “É exatamente o que aconteceu com Elias porque este não pecou”.
Porém em outros textos (cf. Zohar Bresit, 137; Sepher Ha-pardes, 24,4) se afirma que Elias deixou seu corpo material para tomar outro luminoso: “Como Elias pôde subir e habitar os céus que não sustentam nem um grão de trigo?”. O rabino Simão bar Jochai responde: “Encontrei escrito: entre os que nasceram neste mundo, haverá um espírito que baixará sobre a terra e vestirá um corpo. O seu nome é Elias. Ele voltará a subir ao céu, seu corpo permanecerá no turbilhão e seu espírito revestirá um corpo luminoso para que possa habitar entre os anjos”.
Recordemos a este respeito a refutação apresentada por S. Epifânio, justamente contra a idéia tão difundida entre os judeus, de que Elias era um anjo (PG, XLI, col. 976). Tampouco faltam textos que negam qualquer translação de Elias ao céu: “O segundo ano de Ocozias – dizia o rabino José bar Halaphta, discípulo do rabino Aqiba – Elias foi escondido [nignaz], e aparecerá de novo com a vinda do Rei Messias” (Seder Olam Rabba). Com o verbo nignaz, o rabino (do séc. II) insinua que Elias continua vivendo na terra, porém ocultamente. Esta parece ser a concepção de Flávio Josefo (Ant. IX, 2, 2), a das traduções dos Setenta e do Targum (2Rs 2, 1), e provavelmente do texto hebraico do Eclesiástico 48,9.
Entretanto, a opinião comum coloca Elias no céu ou no Paraíso, no alto, com os anjos, onde lhe estão confiadas várias incumbências: a de escrivão celestial (escreve os nomes dos justos e suas boas ações no livro da vida), a de guia das almas (está no caminho que leva ao Paraíso esperando as almas dos justos para acompanhá-las ao lugar que lhe é destinado), e a de intercessor em favor de Israel.
Elias, além disso, desce com freqüência à terra: “Se os cães latem alegres, é porque Elias não está longe; se os cães gemem tristemente, o anjo da morte se acerca” (Bab. Kam. 60b). Os relatos de suas aparições entre os homens constituem lendas, as vezes alegres e instrutivas, que inculcam o amor à justiça e a fé na Providência.
O rabino Kahana (séc. III) ganhava o sustento vendendo cestos às mulheres. Um dia, ao entrar numa casa, foi convidado a pecar; para fugir, subiu pela escada e se jogou do terraço. Porém Elias interveio para salvar sua vida. “Você me obrigou a me deslocar quatrocentas léguas”, lhe disse Elias. E o rabino retrucou: “O que é que me conduziu a esta situação senão minha pobreza?”. O profeta então lhe deu um jarro cheio de moedas de ouro (Midr. Prov., 9, 62).
Porém a função essencial de Elias é a de precursor do Messias. Esta crença se fundamenta na profecia de Malaquias (3,23-24), que há muito tempo era entendida neste sentido. Esta crença era comum entre o povo no tempo de Jesus, como o demonstram as numerosas perguntas sobre a vinda de Elias (Mt 17,10ss. e lugares paralelos; Lc 1,17; Jo 1,21.25). É estranho que os apócrifos não contenham nenhuma predição sobre a função do precursor: unicamente se diz que então aparecerão os homens que estavam mortos (IV Esd 4,26; II Bar 13,3).
A tradição rabínica, pelo contrário, atribui a Elias uma atividade considerável nos primeiros atos da restauração (cf. a este respeito os numerosos textos oferecidos por H. Strack-P. Billerbeck, Kommentar zum Neuen Testament, aus Talmud und Midrash, IV München 1928, p. 779-98; J. Bonsirven, Le judaïsme palestinien…, I, Paris 1935, p. 357-59; M.-J. Strassny, v. bibl.).
Para os judeus, Elias não é um personagem do passado: está presente e acompanha Israel em seu longo e penoso peregrinar; está vivo na piedade judaica individual, como o mais próximo e familiar dos protetores celestiais. No rito da circuncisão, ainda hoje em dia, se deixa sempre um lugar vazio: é o lugar de Elias.
3. Elias nas obras dos Padres
O lugar que o profeta Elias ocupa não só no AT e na tradição judaica, como também no NT, o faz ser recordado nas obras dos Padres com freqüência.
Alguns deles insistem na relação existente entre Elias e São João Batista (cf. Gregório de Nissa, De Virginitate, VI, em PG, XLVI cols. 349-52); outros fixam sua atenção no arrebatamento de Elias e no seu retorno ao final dos tempos. Neste sentido é notável a clara afirmação de Orígenes que, contra a opinião comum, assegura a morte de Elias e nega que haja sido arrebatado ao céu em carne mortal (Em Sl 15,9, PG, XII, col. 1216); outros (S. Justino, S. Irineu, etc.) põe de relevo a personalidade do profeta e o apresentam como modelo de vida de perfeição.
Orígenes apresenta o exemplo de Elias para mostrar a confiança que devemos colocar na oração (Em Sl, 37; Hom., 2, 3, PG, XII, col. 1384) e para estarmos seguros de sua eficácia (De Oratione, 13, em PG, XI, cols. 458ss); Atanásio, na Vita Antonii, refere a máxima de Antão (ou Antônio): “Todos os que professam uma vida solitária devem tomar por regra e por patrono o Grande Elias e ver em suas ações como em um espelho para saber qual deve ser seu comportamento” (em PG, XXVI, col. 752); São João Crisóstomo, por fim, elogia a pobreza de Elias (Hom. em s. Eliam, 3, em PG, LXIII, col. 464): “Elias nada possuía e, sem dúvida, nada o impediu de alcançar o cume da virtude; ele é um oceano sem limites” (cf. Bardy, Le souvenir d’Élie chez les Pères Grecs, em Élie, I, 131- 58).
São numerosos os textos dos Padres latinos que se referem a Elias. Santo Isidoro (De ortu et obitu patrum, 25, em PL, LXXXIII, col. 140) denomina Elias como “grande sacerdote e profeta” e deduz o sacerdócio de Elias a partir do sacrifício que havia oferecido a Yahweh no Horeb. S. Ambrósio escreve a respeito de Elias: “O príncipe mais excelso entre o todos os profetas (De viduis 1, 3, em PL, XVI, col. 235). Da sua missão de denunciar o pecado e convidar à penitência, é indicada sobretudo a primeira tarefa, a increpatio (exortação forte e insistente), junto com a dureza de sua vida e o ardente zelo pela glória de Deus (cf. Jerônimo, Contra João. Hieros., 2; Comm. in Ez., 11, 35, em PL, XXIII, col. 356; XXV, col 334ss). É comum a crença de que Elias não está morto; porém morrerá junto com Enoc, no final dos tempos, lutando contra o Anticristo (cf. Santo Agostinho, Ep. 193, 3, 5; De Genesi ad litt., 9, 5, em CSEL, LVII, p. 170; XXVIII, 274ss). Santo Agostinho (De civitate Dei, 20, 29, em CSEL., XL, 2, 503) atesta que “é muito celebrada nos sermões e nos corações dos fiéis” a idéia da volta de Elias como precursor da segunda vinda de Cristo, como São João Batista o havia sido da primeira. Os Padres procuram ver no Apocalipse 11 os detalhes desta missão profética de Elias, uma das mais importantes dentre as muitas que realizou durante sua vida. Nos dois testemunhos do Apocalipse, eles vêem a Enoch e a Elias (Tertuliano, Ambrosiáster, S. Gregório Magno). “O mesmo que há de vir na segunda vinda do Salvador em sua realidade corporal, vem agora na pessoa de João em virtude e em espírito”, escrevia S. Jerônimo (Comm. in Ev. Mt., 3, 57, em PL., XXVI, col. 124).
O movimento monástico do séc. IV tomou a Elias como seu modelo, pondo em relevo a continência, a pobreza, a vida no deserto, o jejum, sua oração: nosso príncipe é Elias (cf. Cassiano, Conlatio, 14, 4 em CSEL, XIII, p. 400). A mesma importância e relevo lhe dão os Padres sírios (cf. M. Hayek, v. bibl.)
4. Elias no Islão (Islã, Islame ou Islamismo)
Em torno da figura de Elias se formaram numerosas lendas judaicas e cristãs que tiveram amplo influxo também no Islão. O próprio Corão (VI, 85 e XXXVII, 123-30) menciona o “profeta” Ilyâs (cf. Y. Moubarac, Le prophète Élie dans le Coran, em Élie, II, 256-68). Por isso, muitos historiadores e comentaristas muçulmanos fizeram comentários sobre Elias. Do mesmo modo, algumas manifestações a cerca da figura legendária de Elias são atribuídas pelo islamismo ao mítico personagem al-Khadir ou al-Khidr (cf. L. Massignon, Élie et son rôle transhistorique, Khadiriya, no Islam, em Élie, II, p. 269-90).
No monte Carmelo existem lugares venerados, ao mesmo tempo, por cristãos, judeus e muçulmanos; o monte Carmelo em árabe é Gebel Mar Ilyas ou “o monte de Santo Elias”. (cf. para as lendas muçulmanas cf. A. J. Wensinck, na voz Ilyas, em Encyclopédie de l’Islam, II, Leiden-Paris 1927, com a bibliografia que ali se dá [G. Ricciotti].)
5. Elias e o ideal monástico
Aos monges, o tema do aspecto profético de sua própria vida sempre inspirou o mais vivo interesse (cf. Jean Leclercq, La via parfaite. Points de vue sur l’essence de l’état religieux, Turnhout-París 1948, cap. 2, La vie prophétique, 57-81). De fato a espiritualidade da vida de perfeição já foi preparada no AT (cf. Sœur Jeanne d’Arc, Les préparations bibliques de la vie religieuse, VS, XXIV [1956], 474-494). Os grandes profetas Elias, Eliseu e São João Batista foram considerados, junto com outros, como protótipos da vida religiosa.
Antes do início da vida monástica, os Padres apresentaram pouco o profeta Elias como exemplo de vida contemplativa e modelo de vida perfeita. Gustavo Bardy conclui um estudo bastante consciencioso sobre os Padres gregos com estas palavras: “Com certeza, para os leitores, preparados neste sentido, será uma surpresa comprovar que raramente os Padres gregos do século IV propõem Elias como um modelo a ser imitado” (Le souvenir d’Élie chez les Pères grecs, em Élie, I, 137). O mesmo ocorre entre os latinos (cf. Hervé de l’Incarnation, Élie chez les Pères Latins, ibid., p. 206-7).
Os padres do deserto imitam de bom grado o exemplo de nossos antigos padres quanto a fé, sobretudo o de Elias como se percebe na carta aos Hebreus (11,37-38); é um exemplo que inspira sua vida espiritual. Um primeiro testemunho, bastante explícito, de imitação do ideal profético se encontra da vida de Santo Antão, patriarca dos anacoretas. Santo Antão realmente se propunha um progresso contínuo no caminho da perfeição:
Com freqüência repetia a si mesmo as palavras do Apóstolo: “esquecendo-me do que fica para trás, lanço-me para o que está adiante (Fl, 3,13). Recordava também o lema do profeta Elias: O Senhor vive e é necessário que eu compareça hoje em sua presença (“ante cuius conspectu hodie sto”); sublinhava o emprego da palavra hoje, pois contava como nada o tempo passado, considerando de ter apenas começado a servir a Deus, se esforçava a cada dia por alcançar a perfeição necessária para se apresentar diante Dele, isto é, com uma consciência pura e um coração bem preparado para obedecer sempre a Sua vontade e só a Ele servir. “Dizia a si mesmo que convém ao asceta ir ajustando sua vida, a cada dia (=sempre), ao modelo de vida do grande Elias, como quem se olha num espelho” (PG 26, col. 854b).
Era justamente a contínua presença de Deus o que Santo Antão se propunha como ideal. O jovem Onofre que vivia em uma comunidade cenobita da Tebaida, ouvia aos anciãos louvarem a vida eremítica de Elias; “Meus veneráveis irmãos, vocês têm, muitas vezes, me ouvido louvar a vida de nosso santo padre Elias, que procurou se mortificar no deserto com tão grande abstinência e oração que mereceu alcançar do Senhor grandíssima virtude” (PL 73, col. 213). Os eremitas fugiam da vida fácil do mundo para poder chegar a ser cidadãos do céu (cf. Vita Antonini, PG 26, col. 865b) e formar “algo assim como uma região especial de piedade e de justiça” (col. 907b). Santo Ambrósio afirma que os profetas Elias, Eliseu e São João Batista realizaram esta feliz retirada do mundo para o deserto:
Elias fugiu da mulher Jezabel, isto é, do cúmulo da vaidade e fugiu em direção ao monte Horeb, que significa “dessecamento”, para que o rio da vaidade carnal se secasse nele e podendo assim conhecer a Deus em maior plenitude. E assim se encontrava junto ao rio Chorrad, que é como dizer torrente do conhecimento, onde podia alcançar a abundância da divina sabedoria, fugindo do mundo até o ponto de não buscar outro alimento além do que os corvos lhe levavam; se bem que para o mais o seu alimento não era desta terra. Passou, por fim, durante quarenta dias sustentado tão só com o alimento que havia recebido. Não era certamente uma mulher, mas o século que afugentava um profeta tão grande; isto é, o que afugentava era a sedução do mundo, o contágio da má companhia, os sacrilégios de uma nação rebelde e ímpia” (De fuga saeculi 6, 34, PL 14, col. 614 bc).
Hervé da Encarnação faz notar: “Fugir do mundo para matar sua sede nas fontes do conhecimento de Deus: Elias podia servir de maravilhoso exemplo e de guia neste ideal, que era o de Ambrósio e o do movimento monástico do século IV (loco cit., p. 193).
Viver na ação e na contemplação, viver nas duras fadigas do corpo e do coração, respirando constantemente o Cristo: eis a maneira mais simples de um eremita adquirir a paz celestial. Amônio, primeiro sucessor de Santo Antão, escreve a seus monges: “Este foi o caso de Elias” (Carta 8, PO X, p. 587; citado por Michel Hayek, Élie dans la tradition syriaque, em Élie, I, p. 165). No mais “era crença comum entre os autores sírios ver em Elias a perfeita realização do ideal monástico” (p. 164). Por isso, não é de se estranhar que em torno dos principais lugares elianos se encontram eremitas, que veneravam e imitavam ao santo profeta.
No século IV, Etéria nos fala da existência de um monastério junto a Tesbi e da habitação de um solitário no vale de Corra, onde Elias tinha habitado nos tempos do rei Acab (Peregrinatio Sylviae 4 e 16, em Itinera Hierosoymitana, CSEL, XXXIX, 1898, 41 e 59). Um século mais tarde Teodósio menciona uns monges que habitavam em Sarepta (De situ Terrae sanctae, 23, ibid., p. 147) e o pseudo-Antonino afirma a presença de eremitas no vale do Jordão (Itinerarium, 9, ibid., p. 165; cf. Élie, I, p. 211).
Também o gênero de vida estabelecido por Pacômio tem certa analogia com o do profeta:
Os cenobitas de Tabenna se vestem com peles, a exemplo de Elias tesbita, acredito que com a finalidade de recordarem-se, à vista desta veste de peles, a virtude do profeta e possam assim resistir corajosamente aos desejos vergonhosos e fazer crescer a esperança de recompensas semelhantes” (Sozomeno, História eclesiástica, III, 14, PG 67, col. 1069b). Na Vita Pachomii, junto com Eliseu e João Batista, Elias é ressaltado como o grande modelo de Santo Antão (PL 73, col. 231a).
Sem dúvida, Basílio, fundador de uma vida verdadeiramente cenobita, apenas lembra o grande solitário do AT. Se Gregório Nazianzeno e Gregório de Nissa, em seus panegíricos, comparam Basílio ao profeta, é mais que nada como lugar comum literário. Notemos, por outro lado, que como ponto de comparação se toma a solidão (Gregório Nazianzeno, In laudem Basilii, PG 36, col. 536b). O mesmo se lê num escrito pseudo-basiliano: “Também foi assim Elias, o qual fugia da confusão dos homens e se comprazia em viver no deserto… Fixa-te em Elias: depois de quanto retiro, de quanto silêncio, de quantos suores mereceu ver a Deus?” (Commentarium in Isaiam, proemium 7, PG 30, col. 129b).
No Ocidente, “os monges que viviam em comunidade sob a regra de São Bento ou de São Cesáreo não tinham os mesmos motivos que os solitários do Oriente para conservar de modo especial a memória do velho profeta que viveu em seu deserto”(B. Botte, Le culte du prophète Élie dans l’Église chrétienne, em Élie, I, p. 214).
6. Elias como inspirador da vida eremítica
Se Elias não é o fundador, em sentido estrito, da vida monástica, pode ser considerado como seu autêntico precursor. É um mestre, diz Santo Ambrósio, e os monges são seus discípulos (Ep. 63, 82, PL 16, 1211b). Sobre esta primazia escreve São Jerônimo: “Os nossos príncipes Elias e Eliseu e nossos chefes os filhos dos profetas, que habitavam no campo e na solidão, construíam suas tendas perto do rio Jordão” (Ep. 58, ad Paulinum, PL 22, col. 583). E na Vita sancti Pauli ele apresenta, como opinião de alguns, a origem profética da vida monástica:
“Com freqüência muitos se perguntam qual foi o monge que morou por primeiro num ermo. E alguns, remontando-se mais longe, encontraram seu começo no beato Elias e em João Batista” (PL 23, col. 17a). A mesma idéia nos repete Sozomeno como opinião corrente: “Os mestres desta excelente filosofia foram, como dizem alguns, Elias profeta e São João Batista” (l. c., I, 12, PG 67, col. 894a). São Nilo de Ancira chamará a Elias “iniciador de toda vida ascética” (Ep. 181, PG 79, col. 152c). “Eles estabeleceram as primeiras bases desta profissão”, disse Cassiano falando de Elias e de Eliseu, que colocaram os seus fundamentos iniciais” (De institutis coenobiorum, I, 2, PL 49, col. 61a; cf. o comentário de Hervé da Encarnação, loco cit., p. 194-195).
7. A pureza do coração
A pureza do coração é o ideal monástico. Seguindo uma tradição hebraica, desde o princípio a virgindade é atribuída a Elias. Santo Ambrósio o faz na fé (PL 16, col. 192a). São Jerônimo atribui a virgindade também aos filhos dos profetas: “Virgens foram Elias, Eliseu e muitos dos filhos dos profetas” (Ep. 22, 21, ad Eustochium, PL 22, col. 408). São Gregório Magno (Hom. in Evangelia II, 29, 6, PL 76, col. 1217b) e São Nilo (Ep. 181, PG 79, col. 152c) vêem no arrebatamento de Elias a recompensa de sua pureza. De outro lado, esta deve ser entendida no sentido da pureza monástica, da “apátheia”. Elias, amando “os segredos da solidão e a pureza do coração”, realizou o ideal de um monge: “sabemos que ele se uniu familiarissimamante a Deus pelo silêncio da solidão”. (Cassiano, Collationes 14, 4, PL 49, col. 957a). A respeito desta plena disposição de um coração puro remetemos ao belíssimo texto de Afraates, de inspiração eliana, citado em Élie (t. I, p. 165-166). Além do mais, na vida de Elias se encontram os principais exercícios atléticos do eremita: a solidão, o jejum (cf. S. Ambrósio, De Elia et ieiunio, PL 14, cols. 697-728) e a oração.
8. A vida de oração
Elias era sobretudo o inspirador da vida de oração. Ele exorta a se praticar a plenitude do amor divino. “Até quando vais estar mancando?”, com estas palavras do profeta, Orsiesio exorta a seus monges (Doctrina de institutione monachorum 28, PG 40, col. 882c). A oração de Elias, um homem como nós, foi poderosíssima, por isso, sob este aspecto, se constitui num exemplo completo. O vidente do Horeb e do Tabor é também o exemplo de grande intimidade com o Senhor. Para Máximo, o Confessor, a visão do glorioso Elias na sua gruta é um símbolo da mística apofática:
O Horeb representa… um exercício habitual das virtudes num espírito de graça. A caverna é o mistério da sabedoria escondida na alma, e seu santuário. Quem nela penetra terá a intuição profunda e mística do saber “que supera toda ciência” e na qual se manifesta a presença de Deus. Pois se alguém, como o grande profeta Elias, busca verdadeiramente a Deus, deve não somente “subir ao Horeb” (e é evidente que quem se consagrou à ação deve também aplicar-se à virtude), como também “penetrar no interior da caverna” situada sobre o Horeb, isto é, estar completamente dedicado à contemplação, na obscuridade e no mistério mais profundo da sabedoria, fundada sobre uma prática habitual da virtude” (2 Centuria, citado por François de Sainte-Marie, em Les plus vieux textes du Carmel, 47ss). Convém também citar um famoso texto místico de São Gregório Magno (In Ezechielem, II, 1, 17, PL 76, col. 948a).
A mística hesicasta, que vê o lugar místico na luz do Tabor (cf. art. Contemplation, DS, II, cols. 1851-1854), pode igualmente refazer-se no exemplo de Elias. Pedro o Atonita (séc. VIII) é, talvez, o primeiro dos hesicastas a quem se elogia com estas palavras: “Tu decidiste habitar no monte Athos como Elias no Carmelo, para buscar a Deus no silêncio” (citado por Théodosy Spasky, Le culte de prophète Élie et sa figure dans la tradition orientale, em Élie, I, 222).
No Oriente, na celebração litúrgica, é aplicado a Elias o título dos santos monges: “anjo terrestre e homem celestial” (ibid., p. 221). No Ocidente se encontra apenas algum rastro de um culto litúrgico tributado ao Santo Elias (B. Botte, Le culte du prophète Élie dans l’Église chrétienne, em Élie, I, 213-6). Entre os próprios Carmelitas a festa de Elias é bastante tardia (Pascal Kallenberg, Le culte liturgique d’Élie dans l’Ordre du Carmel, em Élie, II, p. 138). O prefácio próprio da festa de Santo Elias cantava (até a última reforma litúrgica): “coloquei os fundamentos da vida monástica”.