Santa Teresa de Ávila: a «Vida» e a Bíblia
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Quando a lemos, S. Teresa de Jesus revela-se sempre e sobretudo como
uma mulher dotada de grande personalidade que irrompe inovadora e
renovadora. Os seus livros parecem escritos com letras de fogo, que nos
contagiam com o entusiasmo e a alegria de viver que a animava. Ora, essa
força comunicativa também dimana do dinamismo vital da palavra bíblica,
pela qual S. Teresa se deixou fecundar.
uma mulher dotada de grande personalidade que irrompe inovadora e
renovadora. Os seus livros parecem escritos com letras de fogo, que nos
contagiam com o entusiasmo e a alegria de viver que a animava. Ora, essa
força comunicativa também dimana do dinamismo vital da palavra bíblica,
pela qual S. Teresa se deixou fecundar.
A mulher forte e livre que ela foi submetia-se
humilde ao poderio da palavra de Deus: “Sempre fui afeiçoada à leitura e
sempre me recolheram mais as palavras dos evangelhos – que saíram
daquela sacratíssima boca tal como as dizia – do que livros muito bem
ordenados” . Ela encheu a sua Vida e as suas obras com o espírito que
ressuma da Bíblia . Deixou-se saturar por ela. Se lhe aflora
espontaneamente ao correr da pena, é porque faz parte daquilo que
escreve, que é a carne da sua vida.
Para nos deixarmos surpreender pela quantidade de vezes com que cita
a Bíblia explícita e implicitamente (além das muitas ressonâncias
bíblicas que perpassam toda a sua obra escrita), convém ligar às muitas e
grandes dificuldades que a abordagem da Bíblia supunha no tempo de
Teresa de Ávila.
1. A leitura da Bíblia no século de ouro espanhol
Uma característica do séc. XVI espanhol, em que S. Teresa viveu, foi
a importância dada à Bíblia na cultura e na espiritualidade. Sinal
desse fervor bíblico foi a publicação da Sacra Bíblia Poliglota
Complutense, em Alcalá de Henares, promovida pelo cardeal Francisco
Ximénez de Cisneros (1437-1517), arcebispo de Toledo. A edição completa
do Novo Testamento veio à luz em 1522, no mesmo ano em que Lutero
produzia a sua versão alemã do Novo Testamento.
Este movimento bíblico contagiou os círculos mais cultivados do povo
cristão, avivando a pregação e a publicação de livros espirituais com
marcada presença da Bíblia. O frade jerónimo, Hernando de Talavera (†
1507), confessor dos «reis católicos», enquanto bispo de Ávila
aconselhava a leitura, em língua vulgar, dos santos evangelhos e de todo
o Novo Testamento, bem como de muitos livros do Antigo Testamento. O
monge beneditino Juan Robles († 1572), uma das figuras mais insignes dos
beneditinos do séc. XVI, procurou pôr a Sagrada Escritura ao alcance do
povo cristão: “Todos os obstáculos do mundo se juntam para não vermos o
evangelho e querem que naveguemos sem mapa de navegação e que sejamos
bons oficiais neste exército da vida cristã sem o livro e a regra desta
arte, que são os evangelhos”. Critica o desatino de alguns teólogos da
época de S. Teresa, de que o evangelho “causa dano em língua vulgar mais
do que em grego e em latim”. E faz o reparo: “Não existe tradução
completa dos evangelhos, apesar de ser a obra mais necessária do que
qualquer outra para estes reinos”. Por isso, decidiu pôr remédio a esse
mal traduzindo os Quatro sacrossantos evangelhos de Jesus Cristo a
partir da Biblia Poliglota de Alcalá .
As palavras deste beneditino, por um lado, confirmam o ambiente de
ardente desejo de ler a Bíblia. Os que favoreciam a tradução da Bíblia
não estavam só em campo protestante: abundavam também entre os
católicos, antes do concílio de Trento e da Reforma protestante. Durante
o final do séc. XV e até meados do século XVI, fizeram-se sem qualquer
dificuldade numerosas traduções parciais da Bíblia para línguas
vernáculas, também espanhol, bem como de inumeráveis livros de piedade
com textos bíblicos . A procura da Bíblia por parte dos fiéis aumentava
constantemente.
Mas, por outro lado, esse florescimento bíblico tinha tido
dificuldades, principalmente por causa dos judaizantes e de algumas
heresias, desde o séc. XIV. E teria havido duas recentes proibições da
Bíblia em língua vernácula: uma, depois da expulsão dos judeus, durante o
reinado dos «reis católicos» (D. Fernando morreu em 1516), e outra,
depois da aparição do protestantismo, no tempo de D. Carlos V (rei de
Espanha a partir de 1516). Chegando a Valência em 1497 o édito que
proibia «Bíblias em língua vulgar» em Espanha, o inquisidor valenciano
mandou apanhar e queimar as Bíblias que pôde. Em 1492 queimaram-se em
Salamanca cerca de vinte volumes.
As dificuldades aumentarão imediatamente antes do concílio de
Trento, altura em que foi travado o ímpeto da piedade popular com a
proibição da tradução e da leitura da Bíblia nas línguas vernáculas. No
concílio de Trento, os Bispos espanhóis e seus teólogos consideravam um
perigo que qualquer pessoa pudesse ler a Bíblia, sem esclarecimento do
seu sentido, com o risco de interpretações distorcidas. Para afastá-la
do povo sem proibi-la aos clérigos, pensou-se que o remédio seria não
traduzi-la . Tal opinião não era partilhada pelos bispos alemães,
italianos e franceses, por não existir esse problema nos seus países:
enquanto em Espanha tinha sido proibida desde havia muito tempo a
leitura da Bíblia em língua vernácula, na Alemanha e em Itália a sua
publicação e leitura nunca tinha sido oficialmente proibida. Só a
Espanha adoptou essa posição. Na 4ª sessão do concílio, em 1546, o
teólogo Alfonso de Castro e o cardeal Pacheco discursaram contra a
difusão da Bíblia em língua vulgar, pelos perigos que suporia para a fé a
sua interpretação pessoal. Para os opositores das traduções da Bíblia, a
sua leitura em língua vulgar tornava-se uma fonte de heresias. Fr.
Alfonso de Castro, professor em Salamanca, considerava as traduções da
Bíblia para as línguas vulgares “a mãe de todas as heresias”. Em 1541
escrevia na sua obra Adversus omnes haereses: “Las herejías no vienen
por la lectura de las Sagradas Escrituras, sino de su perversa
inteligencia… Las traducciones de los libros sagrados a las lenguas
vulgares producen más daño que la lectura de los filósofos gentiles…” .
O famoso teólogo Melquior Cano chegou a afirmar: “Por mais que as
mulheres reclamem com insaciável apetite comer deste fruto [que é ler a
Sagrada Escritura], é necessário vedar-lho com uma faca de fogo, para
que o povo não chegue a ele… A experiência ensinou que… a liberdade de
ler a Sagrada Escritura, toda ou em grande parte, e traduzi-la para
língua vulgar, causou muito dano às mulheres e aos não instruídos” .
Temia-se que a leitura generalizada da Bíblia a interpretasse mal e
fizesse dela mau uso, fazendo-a dizer o que se queria, pondo em perigo a
fé e a Bíblia.
Os Padres do concílio abstiveram-se de legislar sobre a polémica
questão das versões da Bíblia para línguas vulgares. Mas esse silêncio
foi de pouca dura: a postura adoptada no concílio pelos prelados
espanhóis exprimiu-se no Índice de livros proibidos, de 1551, que
proibia uma série de Bíblias suspeitas, que circulavam por Espanha e
pela Europa, mas também as Bíblias “em língua castelhana, francesa ou
flamenga ou em qualquer outra língua vulgar”, embora não dissesse nada
das traduções parciais . Índice mais severo será o aprovado por Paulo
IV, de 1559, rol de livros proibidos pela Inquisição sob o comando do
mesmo inquisidor geral Fernando de Valdés. Mandava retirar da
circulação, não só as Bíblias em língua vulgar e os diversos livros
bíblicos publicados separadamente, mas também “todos e quaisquer
sermões, cartas, tratados, orações e qualquer outro manuscrito que fale
ou trate da Sagrada Escritura”. Nem sequer permitia livros com citações
bíblicas em língua vulgar . Proibia categoricamente a tradução,
impressão, publicação, posse e leitura da Bíblia em qualquer língua
vulgar, especialmente em castelhano . Era um rude golpe no movimento
bíblico entre o povo fiel e religioso feminino, que não sabia latim.
Estancava o fluxo da formação bíblica popular.
A contemporânea S. Teresa de Ávila estranhou tão grave decisão:
Quando foram retirados vários livros em língua vernácula para que
não os lessem, eu senti muito, porque me recreava ler alguns e, agora,
já não podia por serem em latim. Disse-me o Senhor: Não tenhas pena, que
Eu dar-te-ei livro vivo. Eu não entendia a razão destas palavras,
porque ainda não tinha tido visões. Mas, de há uns dias para cá,
entendi-a muito bem, porque tive muito em que pensar e recolher-me com o
que via presente. O Senhor demonstrou para comigo um amor imenso,
porque me instruiu de muitas maneiras. Pouca ou quase nenhuma
necessidade tive de livros. Sua Majestade tem sido o verdadeiro livro
onde tenho visto as verdades. Bendito seja tal livro, que deixa impresso
o que se há-de ler e fazer, de maneira a não se poder esquecer! .
O “livro vivo” substituiria a Bíblia proibida. Mas outras almas não
sentiram dentro de si a mesma solução. A Bíblia não estava ao alcance de
quem a quisesse ler. É verdade que existiam versões parciais (de alguns
livros). E o Antigo Testamento inteiro estava disponível na tradução
espanhola feita pelos judeus portugueses Abraão Usque e Duarte Pinhel,
aparecida na cidade de Ferrara em 1553: tinham sido expulsos de Portugal
e deram origem à famosa Biblia de Ferrara. E ainda havia outra Bíblia
do exílio, a primeira versão espanhola completa, levada a cabo por
Casiodoro de Reina, ex-monge jerónimo de S. Isidoro de Sevilha, depois
convertido ao protestantismo: conhecida como Biblia del Oso, tinha sido
impressa em Basileia em 1569 . Mas não estavam ao alcance dos
católicos: como eram traduções patrocinadas por judeus e protestantes,
suscitavam desconfiança e estavam proibidas pela Inquisição.
Isto não daria para afirmar de forma simplista que «a Igreja proibiu
a Bíblia». Nesta região e nestas circunstâncias, ela restringiu a sua
leitura, pelo receio de interpretações incorrectas. A proibição da sua
tradução para as línguas vulgares de algumas regiões após o concílio de
Trento era uma resposta às circunstâncias do momento. A Igreja começava a
sofrer um dos seus cismas mais profundos com a separação que dela
estavam a realizar os protestantes, que colocavam nas mãos dos fiéis a
Bíblia em língua vulgar, sem explicações do texto . A católica Espanha,
por meio da Inquisição, queria proteger-se dos males morais acarretados
pela muito recente Reforma protestante e afastar o perigo do «livre
exame», a livre interpretação pessoal da Bíblia, proposta pelos
protestantes. Paradoxalmente, a autoridade eclesiástica temia que a
Bíblia causasse danos à fé! Desejando salvaguardar a sua integridade,
adoptou uma postura enérgica. Pairava o receio de perder a densidade
teológica de termos latinos e de perturbar a mente dos cristãos. A
língua vulgar ainda não tinha atingido o estatuto de língua da cultura,
servindo mais para o conto, para a poesia popular e para o teatro. Este
ambiente da passagem cultural da Idade Média para a Moderna ajuda a
entender as reservas da Igreja face à tradução da Bíblia para as línguas
vulgares. Não era só um fenómeno religioso, mas também um fenómeno
cultural e linguístico dentro do contexto da evolução das línguas
nacionais .
S. Teresa nasce, cresce e vive neste ambiente de fervor bíblico, que
foi refreado ou abrandado pelo zelo da Inquisição local. O facto de os
protestantes se terem separado da Igreja levando consigo só a Bíblia fez
perder pouco a pouco o contacto com essa fonte de iluminação da vida.
Em boa medida, no povo simples o ambiente era de medo de intervenções da
Inquisição, pela posse e pela leitura de livros bíblicos. Por causa
deste medo, o Índice de 1559 cumpriu-se à risca até ser suavizado pelo
Índice de 1583, quando Teresa já tinha morrido.
2. A influência da Bíblia na Vida de S. Teresa
O enquadramento que acabamos de fazer sobre as dificuldades e
impossibilidades de leitura da Bíblia no tempo, na cultura e na
religiosidade em que Teresa viveu deixa-nos entender que ela não tenha
sequer possuído uma Bíblia. Simplesmente, nunca teve um exemplar da
Bíblia inteira com todos os livros, para ler e meditar. De facto, não
consta do exaustivo inventário, feito pelo seu pai em 1507, de “bons
livros em língua vulgar, para que os filhos também os pudessem ler” .
Nem a terá tido depois.
Mas o facto de a Santa de Ávila não ter podido manejar a Bíblia
completa não significa que não a tenha conhecido profundamente. Tendo em
conta o ambiente em que viveu, é mesmo surpreendente o lugar de grande
relevo que a Bíblia ocupa na sua vida, na obra escrita e na atitude
profética. As cerca de 870 vezes que Teresa a cita manifestam que leu e
conheceu a maior parte da Bíblia através de citações dos textos sagrados
em livros de espiritualidade ou de grandes antologias dos mesmos . Uma
delas, que Teresa terá usado muito e no qual se recreava, foi Epístolas
y Evangelios para todo o ano, uma espécie de missal da época, que foi
reeditado muitíssimas vezes entre 1512 e 1559 e continha muitos textos
selectos do Novo Testamento . Conhecia muito bem o evangelho, pois,
segundo ela conta, “durante anos, quase todas as noites, antes de
adormecer e encomendar o meu sono a Deus, pensava sempre um pouco nesta
passagem da oração do Horto. Comecei a fazer assim já antes de ser
religiosa” . E “lia a Paixão inteira” . Tendo entrado para a vida
religiosa, a Liturgia das Horas e a Eucaristia, mesmo em latim,
incrementaram o seu contacto com a Escritura . Até as conversações com
os confessores e com os grandes teólogos da Espanha de então
contribuíram para Teresa conhecer mais a Sagrada Escritura. Não é casual
que cite 49 livros bíblicos . Os mais referidos são os evangelhos (que
lhe serviam de ponto de referência para ler outras secções da Bíblia),
as cartas de Paulo, os Salmos e o Cântico dos Cânticos. Nenhum livro
seu carece de numerosas citações bíblicas, sendo os que mais nelas
abundam: o Castelo Interior com 202 e o Livro da Vida com 185.
Vejamos como leu a Bíblia e em que medida foi por ela influenciada.
2.1. A marca bíblica dos seus escritos
Uma das muitas razões da sua riqueza e actualidade para a Igreja
reside no facto de a sua espiritualidade estar profundamente marcada
pela mensagem bíblica. O núcleo duro dos grandes temas que traz à
colação e a trama essencial das suas obras principais estão tecidos com
referências bíblicas . A larga tela da sua copiosa experiência do mundo
do espírito está pintada de inumeráveis imagens matrizes que Teresa
tira do tesouro da Bíblia e elabora na sua narrativa . A Sagrada
Escritura apegou-se à sua vida e à sua doutrina, embebendo-as.
Mas como se processou essa compenetração de Teresa com a Bíblia e da Bíblia com Teresa?
A autoridade da Bíblia não se lhe impôs à força, nem a descobriu por
caminhos teóricos da teologia. Mais do que preocupar-se com o sentido
original de cada texto bíblico, procurava nele o sentido radical para a
própria vida pessoal, onde estava radicado o seu sentido último, que é
Deus. A sua leitura dos textos bíblicos era uma hermenêutica vivencial,
em clave de interioridade e de humanidade.
Não tendo formação bíblica académica, conseguia interpretar bem a
palavra de Deus pela via da intuição, do conhecimento espiritual e da
profunda experiência de fé. Descobria o seu sentido por tê-lo vivido. O
critério de compreensão era o do seu sentido em Cristo. “Parece-me que o
Senhor me dá a entender, para meu propósito, algo do sentido de algumas
palavras… O Senhor dá tanto a entender… Escreverei alguma coisa das que
o Senhor me dá a entender, que se encerram em palavras de que gosta a
minha alma para este caminho de oração” . “Eu conforto-me com o que o
Senhor me dá a entender quando disto ouço alguma coisa” . E onde a
língua gerava dificuldade, o coração ajudava a superá-la: “Estando nesta
quietude, apesar de não entender quase nada do que rezo em latim,
sobretudo o Saltério, tem-me acontecido entender os versículos em
vernáculo e, mais ainda, consolar-me por ver o que quer dizer em língua
vernácula” . Podemos pensar que, em certos casos, teve da Escritura uma
experiência mística, compreendendo-a por revelação de Deus . E essa
experiência – aonde o teólogo dificilmente entra – deu-lhe mais estima
da Escritura, convencida de que, também através dela, Deus comunica a
sua vontade e ilumina a vida.
Assim, em grande medida os textos bíblicos vinham ilustrar,
confirmar, aprovar a experiência espiritual já vivida por ela. Como
tinha acontecido com S. Paulo, não terão sido só as Escrituras a
transformar Teresa mas o encontro pessoal com Deus em Jesus Cristo,
encontro esse que ela depois relia nas Escrituras . Em sintonia com a
grande tradição da Igreja, Teresa lia as possíveis partes da Bíblia a
partir da vida humana e espiritual.
Mas o que acontecia nessa leitura não se reduz facilmente a uma
única explicação. A Madre Teresa também lia a vida a partir da Bíblia:
ou seja, recorria a ela para se dizer a si própria e a sua experiência
de Deus . A Bíblia dava-lhe Deus, orientava-a cada vez mais
perfeitamente para Deus, afinava a sua relação com Ele e beneficiava o
encontro com os humanos: “Oh Jesus! Quem pudesse saber as muitas coisas
da Escritura que deve haver para dar a entender esta paz de alma!” . Na
realidade, sempre houve na vida de Teresa um contínuo vaivém da vida
para as Escrituras e das Escrituras para a vida: a vida ajudava a
compreender melhor a Escritura e a Escritura interpretava as
circunstâncias da existência humana.
Nesse jogo hermenêutico de se deixar guiar pela palavra de Deus,
gostava de identificar-se com os inspiradores «modelos de acção» que
encontrava nas personagens bíblicas, tão frequentemente por ela
mencionadas, aquelas que incarnavam as atitudes mais nobres diante de
Deus. A lista bem abonada de figuras bíblicas é mais um documento da sua
grande sensibilidade bíblica e da sua forma de ler a página sagrada em
busca de ideais que arrastam .
Também esta procura quer dizer que para Teresa a Bíblia não ficava
encerrada no passado: como os Padres da Igreja, como os monges da Idade
Média, experimentava a Palavra de Deus como viva, actual,
impulsionadora, sedutora, no hoje da própria vida, desde que começou a
ter contacto com ela: “em tão boa companhia e com a força que as
palavras de Deus deixavam no meu coração, tanto as que lia como as que
ouvia, fui entendendo a verdade como quando era criança” .
2.2. A alta estima pela Sagrada Escritura
No ambiente hostil e perigoso para os que tentavam furar a malha da
proibição de ler a Bíblia em língua vulgar, Teresa mostrou excepcional
espírito de liberdade e delicado amor pela palavra de Deus. Quando a
advertiam de que podia ser acusada aos inquisidores por causa de “alguma
revelação”, ela reagiu: “Isto deu-me graça e fez-me rir, pois neste
ponto nunca temi… Por qualquer verdade da Sagrada Escritura, eu me
ofereceria para morrer mil mortes” . Tendo sentido Jesus a falar-lhe,
confessa: “Fiquei com grande fortaleza e vontade de cumprir com todas as
minhas forças a mais pequena letra da divina Escritura” .
É conhecida em Teresa a grande capacidade de amar. Empenhou-se
particularmente num amor: o amor à verdade. A interlocutora de Deus, que
sentia responsabilidade diante d’Ele e dos humanos por aquilo que
contava de si própria, existiu em busca da verdade. Referindo-se aos
progressos espirituais da sua alma, diz que “o seu pensamento estava tão
habituado em entender a autêntica verdade que tudo o resto lhe parece
brincadeira de crianças” . E essa verdade verdadeira, com a qual podia
confrontar as suas pequenas e grandes verdades, “esta Verdade que me foi
revelada”, era “em si mesma a verdade, sem princípio nem fim. Todas as
outras verdades dependem desta Verdade” . Ora, essa verdade coincide
com o plano salvífico de Deus descrito na Sagrada Escritura. Nela,
especialmente na pessoa e no evangelho de Jesus, Teresa encontrava a
Verdade de Deus e a verdade sobre si própria. Lendo a palavra de Deus
como revelação sempre actual para a sua história pessoal, o Livro da
[sua] Vida é a história da relação de Deus com ela, “o triunfo da graça
sobre a debilidade humana” , uma miniatura da história da salvação
bíblica, à luz da qual aprendeu também a ler a história humana do seu
tempo. Contando episódios da sua vida em jeito de colóquio com Deus e
aludindo ao salmo 89,2, faz “resplandecer o bem imenso das vossas
misericórdias. E com quanta razão as posso eu para sempre cantar” .
Teresa de Jesus “bem entendeu ser a mesma Verdade” a dizer-lhe: “Todo o
mal que vem ao mundo é por não se conhecerem deveras as verdades da
Sagrada Escritura, da qual nem um til ficará por cumprir” . Também
assim lia e vivia a sua vida à luz da palavra de Deus.
Teresa estava convencida de que a Bíblia, além de induzir a um bom
comportamento, dava consistência, profundidade e conteúdo à vida de
oração e à vida espiritual em geral. Dizia: “Ser pessoa de muitas letras
é uma grande coisa! Os que as possuem, instruem-nos, a nós que pouco
sabemos, e dão-nos luz; desta maneira, conhecendo as verdades da Sagrada
Escritura, fazemos o que devemos. De devoções à toa livre-nos Deus!…
[de devociones a bobas nos libre Dios]” . Por isso, sempre que podia,
procurava a opinião dos letrados, para não se equivocar ao seguir as
pequenas verdades pessoais: “um bom letrado nunca me enganou” . Dizia
que “apesar de alguns [letrados/teólogos] serem inexperientes [no que
toca à oração], não aborrecem nem ignoram o que é espiritual; e, na
Sagrada Escritura que estudam, acabam sempre na verdade do bom espírito”
. Falando precisamente do juízo que pedia aos confessores sobre a sua
vida espiritual, declara satisfeita: “Nada encontraram que não seja
muito conforme à Sagrada Escritura. Isto já me deixa mais sossegada” . E
para as “coisas do espírito” recomenda: “no [que diz respeito ao]
sobrenatural, veja se está conforme à Sagrada Escritura” . Como
critério para julgar a proveniência de uma visão espiritual, sugere:
“Pelo que tenho visto e sei por experiência, acredita-se que é fala de
Deus se for conforme à Sagrada Escritura” . “Eu acreditava de tal
maneira na verdade da revelação [particular, a ela] que… me parecia
impossível que a fundação não se fizesse, a não ser que fosse contra o
que está na Sagrada Escritura” . Quanto às «falas» interiores, avisa:
“De qualquer uma que não esteja muito conforme à Sagrada Escritura não
façais caso delas…” .
Conclusão
Nos seus escritos, a santa Madre fala de si, da sua experiência.
Mas, simultaneamente, fala de Deus, da acção de Deus nela. Para quem a
lê hoje, isso é que vale. Ela fala de Deus como de uma pessoa conhecida.
Ao lê-la, fica a impressão de que teve um encontro com Ele antes de se
pôr a escrever. Realmente, encontrou-se com Ele nas suas experiências
místicas, na oração, na meditação, na vida. Mas também nas Sagradas
Escrituras.
Esta constatação lança um desafio aos cristãos privilegiados de
hoje. Se Teresa de Ávila tivesse tido as facilidades que temos hoje para
ler, meditar e entender a Bíblia, oferecida em diversas traduções, com
boas introduções a cada livro bíblico e com notas explicativas de
expressões mais difíceis!… Como aproveitaria os momentos disponíveis
para se deixar impregnar do espírito da palavra inspirada pelo Espírito
de Deus! Para o fazer hoje, é preciso convencer-se de que a Bíblia não é
só a carta fundacional ou a narrativa fundadora da fé cristã. Nem se
apresenta como código moral de proibições e de leis a cumprir.
Obviamente, não é «um manual de maus costumes, um catálogo de crueldades
e do pior da natureza humana». É uma instância crítica para o ser
humano se rever ao mais alto nível e aprender a transcender-se; uma
instância crítica pro-vocante, que faz pensar, desafia, alerta e inspira
a acção, à luz da palavra e da acção do Homem Novo, que a fé vê como
Filho de Deus. Ela inscreve-se como viático, companheira de viagem do
homo viator. Acima de tudo, há que de pensar – porque é verdade – que
ela efectivamente influencia a vida e determina o andamento da história
humana. Diante do crescente laicismo, que pretende enclausurar a vida
religiosa dos cidadãos na esfera privada, sem nenhuma manifestação
social e pública, a mensagem bíblica reforça e ilumina os princípios
básicos de qualquer convivência humana.
É nessa função interpelante que está o grande valor da Bíblia. Lida
assiduamente, gera em mim como uma segunda natureza, oferece respostas
para os problemas do quotidiano, questiona e sugere, adverte e salva,
fazendo que o leitor viva fiel a si próprio, segundo Deus, como
aconteceu com Teresa de Ávila.
Armindo dos Santos Vaz
humilde ao poderio da palavra de Deus: “Sempre fui afeiçoada à leitura e
sempre me recolheram mais as palavras dos evangelhos – que saíram
daquela sacratíssima boca tal como as dizia – do que livros muito bem
ordenados” . Ela encheu a sua Vida e as suas obras com o espírito que
ressuma da Bíblia . Deixou-se saturar por ela. Se lhe aflora
espontaneamente ao correr da pena, é porque faz parte daquilo que
escreve, que é a carne da sua vida.
Para nos deixarmos surpreender pela quantidade de vezes com que cita
a Bíblia explícita e implicitamente (além das muitas ressonâncias
bíblicas que perpassam toda a sua obra escrita), convém ligar às muitas e
grandes dificuldades que a abordagem da Bíblia supunha no tempo de
Teresa de Ávila.
1. A leitura da Bíblia no século de ouro espanhol
Uma característica do séc. XVI espanhol, em que S. Teresa viveu, foi
a importância dada à Bíblia na cultura e na espiritualidade. Sinal
desse fervor bíblico foi a publicação da Sacra Bíblia Poliglota
Complutense, em Alcalá de Henares, promovida pelo cardeal Francisco
Ximénez de Cisneros (1437-1517), arcebispo de Toledo. A edição completa
do Novo Testamento veio à luz em 1522, no mesmo ano em que Lutero
produzia a sua versão alemã do Novo Testamento.
Este movimento bíblico contagiou os círculos mais cultivados do povo
cristão, avivando a pregação e a publicação de livros espirituais com
marcada presença da Bíblia. O frade jerónimo, Hernando de Talavera (†
1507), confessor dos «reis católicos», enquanto bispo de Ávila
aconselhava a leitura, em língua vulgar, dos santos evangelhos e de todo
o Novo Testamento, bem como de muitos livros do Antigo Testamento. O
monge beneditino Juan Robles († 1572), uma das figuras mais insignes dos
beneditinos do séc. XVI, procurou pôr a Sagrada Escritura ao alcance do
povo cristão: “Todos os obstáculos do mundo se juntam para não vermos o
evangelho e querem que naveguemos sem mapa de navegação e que sejamos
bons oficiais neste exército da vida cristã sem o livro e a regra desta
arte, que são os evangelhos”. Critica o desatino de alguns teólogos da
época de S. Teresa, de que o evangelho “causa dano em língua vulgar mais
do que em grego e em latim”. E faz o reparo: “Não existe tradução
completa dos evangelhos, apesar de ser a obra mais necessária do que
qualquer outra para estes reinos”. Por isso, decidiu pôr remédio a esse
mal traduzindo os Quatro sacrossantos evangelhos de Jesus Cristo a
partir da Biblia Poliglota de Alcalá .
As palavras deste beneditino, por um lado, confirmam o ambiente de
ardente desejo de ler a Bíblia. Os que favoreciam a tradução da Bíblia
não estavam só em campo protestante: abundavam também entre os
católicos, antes do concílio de Trento e da Reforma protestante. Durante
o final do séc. XV e até meados do século XVI, fizeram-se sem qualquer
dificuldade numerosas traduções parciais da Bíblia para línguas
vernáculas, também espanhol, bem como de inumeráveis livros de piedade
com textos bíblicos . A procura da Bíblia por parte dos fiéis aumentava
constantemente.
Mas, por outro lado, esse florescimento bíblico tinha tido
dificuldades, principalmente por causa dos judaizantes e de algumas
heresias, desde o séc. XIV. E teria havido duas recentes proibições da
Bíblia em língua vernácula: uma, depois da expulsão dos judeus, durante o
reinado dos «reis católicos» (D. Fernando morreu em 1516), e outra,
depois da aparição do protestantismo, no tempo de D. Carlos V (rei de
Espanha a partir de 1516). Chegando a Valência em 1497 o édito que
proibia «Bíblias em língua vulgar» em Espanha, o inquisidor valenciano
mandou apanhar e queimar as Bíblias que pôde. Em 1492 queimaram-se em
Salamanca cerca de vinte volumes.
As dificuldades aumentarão imediatamente antes do concílio de
Trento, altura em que foi travado o ímpeto da piedade popular com a
proibição da tradução e da leitura da Bíblia nas línguas vernáculas. No
concílio de Trento, os Bispos espanhóis e seus teólogos consideravam um
perigo que qualquer pessoa pudesse ler a Bíblia, sem esclarecimento do
seu sentido, com o risco de interpretações distorcidas. Para afastá-la
do povo sem proibi-la aos clérigos, pensou-se que o remédio seria não
traduzi-la . Tal opinião não era partilhada pelos bispos alemães,
italianos e franceses, por não existir esse problema nos seus países:
enquanto em Espanha tinha sido proibida desde havia muito tempo a
leitura da Bíblia em língua vernácula, na Alemanha e em Itália a sua
publicação e leitura nunca tinha sido oficialmente proibida. Só a
Espanha adoptou essa posição. Na 4ª sessão do concílio, em 1546, o
teólogo Alfonso de Castro e o cardeal Pacheco discursaram contra a
difusão da Bíblia em língua vulgar, pelos perigos que suporia para a fé a
sua interpretação pessoal. Para os opositores das traduções da Bíblia, a
sua leitura em língua vulgar tornava-se uma fonte de heresias. Fr.
Alfonso de Castro, professor em Salamanca, considerava as traduções da
Bíblia para as línguas vulgares “a mãe de todas as heresias”. Em 1541
escrevia na sua obra Adversus omnes haereses: “Las herejías no vienen
por la lectura de las Sagradas Escrituras, sino de su perversa
inteligencia… Las traducciones de los libros sagrados a las lenguas
vulgares producen más daño que la lectura de los filósofos gentiles…” .
O famoso teólogo Melquior Cano chegou a afirmar: “Por mais que as
mulheres reclamem com insaciável apetite comer deste fruto [que é ler a
Sagrada Escritura], é necessário vedar-lho com uma faca de fogo, para
que o povo não chegue a ele… A experiência ensinou que… a liberdade de
ler a Sagrada Escritura, toda ou em grande parte, e traduzi-la para
língua vulgar, causou muito dano às mulheres e aos não instruídos” .
Temia-se que a leitura generalizada da Bíblia a interpretasse mal e
fizesse dela mau uso, fazendo-a dizer o que se queria, pondo em perigo a
fé e a Bíblia.
Os Padres do concílio abstiveram-se de legislar sobre a polémica
questão das versões da Bíblia para línguas vulgares. Mas esse silêncio
foi de pouca dura: a postura adoptada no concílio pelos prelados
espanhóis exprimiu-se no Índice de livros proibidos, de 1551, que
proibia uma série de Bíblias suspeitas, que circulavam por Espanha e
pela Europa, mas também as Bíblias “em língua castelhana, francesa ou
flamenga ou em qualquer outra língua vulgar”, embora não dissesse nada
das traduções parciais . Índice mais severo será o aprovado por Paulo
IV, de 1559, rol de livros proibidos pela Inquisição sob o comando do
mesmo inquisidor geral Fernando de Valdés. Mandava retirar da
circulação, não só as Bíblias em língua vulgar e os diversos livros
bíblicos publicados separadamente, mas também “todos e quaisquer
sermões, cartas, tratados, orações e qualquer outro manuscrito que fale
ou trate da Sagrada Escritura”. Nem sequer permitia livros com citações
bíblicas em língua vulgar . Proibia categoricamente a tradução,
impressão, publicação, posse e leitura da Bíblia em qualquer língua
vulgar, especialmente em castelhano . Era um rude golpe no movimento
bíblico entre o povo fiel e religioso feminino, que não sabia latim.
Estancava o fluxo da formação bíblica popular.
A contemporânea S. Teresa de Ávila estranhou tão grave decisão:
Quando foram retirados vários livros em língua vernácula para que
não os lessem, eu senti muito, porque me recreava ler alguns e, agora,
já não podia por serem em latim. Disse-me o Senhor: Não tenhas pena, que
Eu dar-te-ei livro vivo. Eu não entendia a razão destas palavras,
porque ainda não tinha tido visões. Mas, de há uns dias para cá,
entendi-a muito bem, porque tive muito em que pensar e recolher-me com o
que via presente. O Senhor demonstrou para comigo um amor imenso,
porque me instruiu de muitas maneiras. Pouca ou quase nenhuma
necessidade tive de livros. Sua Majestade tem sido o verdadeiro livro
onde tenho visto as verdades. Bendito seja tal livro, que deixa impresso
o que se há-de ler e fazer, de maneira a não se poder esquecer! .
O “livro vivo” substituiria a Bíblia proibida. Mas outras almas não
sentiram dentro de si a mesma solução. A Bíblia não estava ao alcance de
quem a quisesse ler. É verdade que existiam versões parciais (de alguns
livros). E o Antigo Testamento inteiro estava disponível na tradução
espanhola feita pelos judeus portugueses Abraão Usque e Duarte Pinhel,
aparecida na cidade de Ferrara em 1553: tinham sido expulsos de Portugal
e deram origem à famosa Biblia de Ferrara. E ainda havia outra Bíblia
do exílio, a primeira versão espanhola completa, levada a cabo por
Casiodoro de Reina, ex-monge jerónimo de S. Isidoro de Sevilha, depois
convertido ao protestantismo: conhecida como Biblia del Oso, tinha sido
impressa em Basileia em 1569 . Mas não estavam ao alcance dos
católicos: como eram traduções patrocinadas por judeus e protestantes,
suscitavam desconfiança e estavam proibidas pela Inquisição.
Isto não daria para afirmar de forma simplista que «a Igreja proibiu
a Bíblia». Nesta região e nestas circunstâncias, ela restringiu a sua
leitura, pelo receio de interpretações incorrectas. A proibição da sua
tradução para as línguas vulgares de algumas regiões após o concílio de
Trento era uma resposta às circunstâncias do momento. A Igreja começava a
sofrer um dos seus cismas mais profundos com a separação que dela
estavam a realizar os protestantes, que colocavam nas mãos dos fiéis a
Bíblia em língua vulgar, sem explicações do texto . A católica Espanha,
por meio da Inquisição, queria proteger-se dos males morais acarretados
pela muito recente Reforma protestante e afastar o perigo do «livre
exame», a livre interpretação pessoal da Bíblia, proposta pelos
protestantes. Paradoxalmente, a autoridade eclesiástica temia que a
Bíblia causasse danos à fé! Desejando salvaguardar a sua integridade,
adoptou uma postura enérgica. Pairava o receio de perder a densidade
teológica de termos latinos e de perturbar a mente dos cristãos. A
língua vulgar ainda não tinha atingido o estatuto de língua da cultura,
servindo mais para o conto, para a poesia popular e para o teatro. Este
ambiente da passagem cultural da Idade Média para a Moderna ajuda a
entender as reservas da Igreja face à tradução da Bíblia para as línguas
vulgares. Não era só um fenómeno religioso, mas também um fenómeno
cultural e linguístico dentro do contexto da evolução das línguas
nacionais .
S. Teresa nasce, cresce e vive neste ambiente de fervor bíblico, que
foi refreado ou abrandado pelo zelo da Inquisição local. O facto de os
protestantes se terem separado da Igreja levando consigo só a Bíblia fez
perder pouco a pouco o contacto com essa fonte de iluminação da vida.
Em boa medida, no povo simples o ambiente era de medo de intervenções da
Inquisição, pela posse e pela leitura de livros bíblicos. Por causa
deste medo, o Índice de 1559 cumpriu-se à risca até ser suavizado pelo
Índice de 1583, quando Teresa já tinha morrido.
2. A influência da Bíblia na Vida de S. Teresa
O enquadramento que acabamos de fazer sobre as dificuldades e
impossibilidades de leitura da Bíblia no tempo, na cultura e na
religiosidade em que Teresa viveu deixa-nos entender que ela não tenha
sequer possuído uma Bíblia. Simplesmente, nunca teve um exemplar da
Bíblia inteira com todos os livros, para ler e meditar. De facto, não
consta do exaustivo inventário, feito pelo seu pai em 1507, de “bons
livros em língua vulgar, para que os filhos também os pudessem ler” .
Nem a terá tido depois.
Mas o facto de a Santa de Ávila não ter podido manejar a Bíblia
completa não significa que não a tenha conhecido profundamente. Tendo em
conta o ambiente em que viveu, é mesmo surpreendente o lugar de grande
relevo que a Bíblia ocupa na sua vida, na obra escrita e na atitude
profética. As cerca de 870 vezes que Teresa a cita manifestam que leu e
conheceu a maior parte da Bíblia através de citações dos textos sagrados
em livros de espiritualidade ou de grandes antologias dos mesmos . Uma
delas, que Teresa terá usado muito e no qual se recreava, foi Epístolas
y Evangelios para todo o ano, uma espécie de missal da época, que foi
reeditado muitíssimas vezes entre 1512 e 1559 e continha muitos textos
selectos do Novo Testamento . Conhecia muito bem o evangelho, pois,
segundo ela conta, “durante anos, quase todas as noites, antes de
adormecer e encomendar o meu sono a Deus, pensava sempre um pouco nesta
passagem da oração do Horto. Comecei a fazer assim já antes de ser
religiosa” . E “lia a Paixão inteira” . Tendo entrado para a vida
religiosa, a Liturgia das Horas e a Eucaristia, mesmo em latim,
incrementaram o seu contacto com a Escritura . Até as conversações com
os confessores e com os grandes teólogos da Espanha de então
contribuíram para Teresa conhecer mais a Sagrada Escritura. Não é casual
que cite 49 livros bíblicos . Os mais referidos são os evangelhos (que
lhe serviam de ponto de referência para ler outras secções da Bíblia),
as cartas de Paulo, os Salmos e o Cântico dos Cânticos. Nenhum livro
seu carece de numerosas citações bíblicas, sendo os que mais nelas
abundam: o Castelo Interior com 202 e o Livro da Vida com 185.
Vejamos como leu a Bíblia e em que medida foi por ela influenciada.
2.1. A marca bíblica dos seus escritos
Uma das muitas razões da sua riqueza e actualidade para a Igreja
reside no facto de a sua espiritualidade estar profundamente marcada
pela mensagem bíblica. O núcleo duro dos grandes temas que traz à
colação e a trama essencial das suas obras principais estão tecidos com
referências bíblicas . A larga tela da sua copiosa experiência do mundo
do espírito está pintada de inumeráveis imagens matrizes que Teresa
tira do tesouro da Bíblia e elabora na sua narrativa . A Sagrada
Escritura apegou-se à sua vida e à sua doutrina, embebendo-as.
Mas como se processou essa compenetração de Teresa com a Bíblia e da Bíblia com Teresa?
A autoridade da Bíblia não se lhe impôs à força, nem a descobriu por
caminhos teóricos da teologia. Mais do que preocupar-se com o sentido
original de cada texto bíblico, procurava nele o sentido radical para a
própria vida pessoal, onde estava radicado o seu sentido último, que é
Deus. A sua leitura dos textos bíblicos era uma hermenêutica vivencial,
em clave de interioridade e de humanidade.
Não tendo formação bíblica académica, conseguia interpretar bem a
palavra de Deus pela via da intuição, do conhecimento espiritual e da
profunda experiência de fé. Descobria o seu sentido por tê-lo vivido. O
critério de compreensão era o do seu sentido em Cristo. “Parece-me que o
Senhor me dá a entender, para meu propósito, algo do sentido de algumas
palavras… O Senhor dá tanto a entender… Escreverei alguma coisa das que
o Senhor me dá a entender, que se encerram em palavras de que gosta a
minha alma para este caminho de oração” . “Eu conforto-me com o que o
Senhor me dá a entender quando disto ouço alguma coisa” . E onde a
língua gerava dificuldade, o coração ajudava a superá-la: “Estando nesta
quietude, apesar de não entender quase nada do que rezo em latim,
sobretudo o Saltério, tem-me acontecido entender os versículos em
vernáculo e, mais ainda, consolar-me por ver o que quer dizer em língua
vernácula” . Podemos pensar que, em certos casos, teve da Escritura uma
experiência mística, compreendendo-a por revelação de Deus . E essa
experiência – aonde o teólogo dificilmente entra – deu-lhe mais estima
da Escritura, convencida de que, também através dela, Deus comunica a
sua vontade e ilumina a vida.
Assim, em grande medida os textos bíblicos vinham ilustrar,
confirmar, aprovar a experiência espiritual já vivida por ela. Como
tinha acontecido com S. Paulo, não terão sido só as Escrituras a
transformar Teresa mas o encontro pessoal com Deus em Jesus Cristo,
encontro esse que ela depois relia nas Escrituras . Em sintonia com a
grande tradição da Igreja, Teresa lia as possíveis partes da Bíblia a
partir da vida humana e espiritual.
Mas o que acontecia nessa leitura não se reduz facilmente a uma
única explicação. A Madre Teresa também lia a vida a partir da Bíblia:
ou seja, recorria a ela para se dizer a si própria e a sua experiência
de Deus . A Bíblia dava-lhe Deus, orientava-a cada vez mais
perfeitamente para Deus, afinava a sua relação com Ele e beneficiava o
encontro com os humanos: “Oh Jesus! Quem pudesse saber as muitas coisas
da Escritura que deve haver para dar a entender esta paz de alma!” . Na
realidade, sempre houve na vida de Teresa um contínuo vaivém da vida
para as Escrituras e das Escrituras para a vida: a vida ajudava a
compreender melhor a Escritura e a Escritura interpretava as
circunstâncias da existência humana.
Nesse jogo hermenêutico de se deixar guiar pela palavra de Deus,
gostava de identificar-se com os inspiradores «modelos de acção» que
encontrava nas personagens bíblicas, tão frequentemente por ela
mencionadas, aquelas que incarnavam as atitudes mais nobres diante de
Deus. A lista bem abonada de figuras bíblicas é mais um documento da sua
grande sensibilidade bíblica e da sua forma de ler a página sagrada em
busca de ideais que arrastam .
Também esta procura quer dizer que para Teresa a Bíblia não ficava
encerrada no passado: como os Padres da Igreja, como os monges da Idade
Média, experimentava a Palavra de Deus como viva, actual,
impulsionadora, sedutora, no hoje da própria vida, desde que começou a
ter contacto com ela: “em tão boa companhia e com a força que as
palavras de Deus deixavam no meu coração, tanto as que lia como as que
ouvia, fui entendendo a verdade como quando era criança” .
2.2. A alta estima pela Sagrada Escritura
No ambiente hostil e perigoso para os que tentavam furar a malha da
proibição de ler a Bíblia em língua vulgar, Teresa mostrou excepcional
espírito de liberdade e delicado amor pela palavra de Deus. Quando a
advertiam de que podia ser acusada aos inquisidores por causa de “alguma
revelação”, ela reagiu: “Isto deu-me graça e fez-me rir, pois neste
ponto nunca temi… Por qualquer verdade da Sagrada Escritura, eu me
ofereceria para morrer mil mortes” . Tendo sentido Jesus a falar-lhe,
confessa: “Fiquei com grande fortaleza e vontade de cumprir com todas as
minhas forças a mais pequena letra da divina Escritura” .
É conhecida em Teresa a grande capacidade de amar. Empenhou-se
particularmente num amor: o amor à verdade. A interlocutora de Deus, que
sentia responsabilidade diante d’Ele e dos humanos por aquilo que
contava de si própria, existiu em busca da verdade. Referindo-se aos
progressos espirituais da sua alma, diz que “o seu pensamento estava tão
habituado em entender a autêntica verdade que tudo o resto lhe parece
brincadeira de crianças” . E essa verdade verdadeira, com a qual podia
confrontar as suas pequenas e grandes verdades, “esta Verdade que me foi
revelada”, era “em si mesma a verdade, sem princípio nem fim. Todas as
outras verdades dependem desta Verdade” . Ora, essa verdade coincide
com o plano salvífico de Deus descrito na Sagrada Escritura. Nela,
especialmente na pessoa e no evangelho de Jesus, Teresa encontrava a
Verdade de Deus e a verdade sobre si própria. Lendo a palavra de Deus
como revelação sempre actual para a sua história pessoal, o Livro da
[sua] Vida é a história da relação de Deus com ela, “o triunfo da graça
sobre a debilidade humana” , uma miniatura da história da salvação
bíblica, à luz da qual aprendeu também a ler a história humana do seu
tempo. Contando episódios da sua vida em jeito de colóquio com Deus e
aludindo ao salmo 89,2, faz “resplandecer o bem imenso das vossas
misericórdias. E com quanta razão as posso eu para sempre cantar” .
Teresa de Jesus “bem entendeu ser a mesma Verdade” a dizer-lhe: “Todo o
mal que vem ao mundo é por não se conhecerem deveras as verdades da
Sagrada Escritura, da qual nem um til ficará por cumprir” . Também
assim lia e vivia a sua vida à luz da palavra de Deus.
Teresa estava convencida de que a Bíblia, além de induzir a um bom
comportamento, dava consistência, profundidade e conteúdo à vida de
oração e à vida espiritual em geral. Dizia: “Ser pessoa de muitas letras
é uma grande coisa! Os que as possuem, instruem-nos, a nós que pouco
sabemos, e dão-nos luz; desta maneira, conhecendo as verdades da Sagrada
Escritura, fazemos o que devemos. De devoções à toa livre-nos Deus!…
[de devociones a bobas nos libre Dios]” . Por isso, sempre que podia,
procurava a opinião dos letrados, para não se equivocar ao seguir as
pequenas verdades pessoais: “um bom letrado nunca me enganou” . Dizia
que “apesar de alguns [letrados/teólogos] serem inexperientes [no que
toca à oração], não aborrecem nem ignoram o que é espiritual; e, na
Sagrada Escritura que estudam, acabam sempre na verdade do bom espírito”
. Falando precisamente do juízo que pedia aos confessores sobre a sua
vida espiritual, declara satisfeita: “Nada encontraram que não seja
muito conforme à Sagrada Escritura. Isto já me deixa mais sossegada” . E
para as “coisas do espírito” recomenda: “no [que diz respeito ao]
sobrenatural, veja se está conforme à Sagrada Escritura” . Como
critério para julgar a proveniência de uma visão espiritual, sugere:
“Pelo que tenho visto e sei por experiência, acredita-se que é fala de
Deus se for conforme à Sagrada Escritura” . “Eu acreditava de tal
maneira na verdade da revelação [particular, a ela] que… me parecia
impossível que a fundação não se fizesse, a não ser que fosse contra o
que está na Sagrada Escritura” . Quanto às «falas» interiores, avisa:
“De qualquer uma que não esteja muito conforme à Sagrada Escritura não
façais caso delas…” .
Conclusão
Nos seus escritos, a santa Madre fala de si, da sua experiência.
Mas, simultaneamente, fala de Deus, da acção de Deus nela. Para quem a
lê hoje, isso é que vale. Ela fala de Deus como de uma pessoa conhecida.
Ao lê-la, fica a impressão de que teve um encontro com Ele antes de se
pôr a escrever. Realmente, encontrou-se com Ele nas suas experiências
místicas, na oração, na meditação, na vida. Mas também nas Sagradas
Escrituras.
Esta constatação lança um desafio aos cristãos privilegiados de
hoje. Se Teresa de Ávila tivesse tido as facilidades que temos hoje para
ler, meditar e entender a Bíblia, oferecida em diversas traduções, com
boas introduções a cada livro bíblico e com notas explicativas de
expressões mais difíceis!… Como aproveitaria os momentos disponíveis
para se deixar impregnar do espírito da palavra inspirada pelo Espírito
de Deus! Para o fazer hoje, é preciso convencer-se de que a Bíblia não é
só a carta fundacional ou a narrativa fundadora da fé cristã. Nem se
apresenta como código moral de proibições e de leis a cumprir.
Obviamente, não é «um manual de maus costumes, um catálogo de crueldades
e do pior da natureza humana». É uma instância crítica para o ser
humano se rever ao mais alto nível e aprender a transcender-se; uma
instância crítica pro-vocante, que faz pensar, desafia, alerta e inspira
a acção, à luz da palavra e da acção do Homem Novo, que a fé vê como
Filho de Deus. Ela inscreve-se como viático, companheira de viagem do
homo viator. Acima de tudo, há que de pensar – porque é verdade – que
ela efectivamente influencia a vida e determina o andamento da história
humana. Diante do crescente laicismo, que pretende enclausurar a vida
religiosa dos cidadãos na esfera privada, sem nenhuma manifestação
social e pública, a mensagem bíblica reforça e ilumina os princípios
básicos de qualquer convivência humana.
É nessa função interpelante que está o grande valor da Bíblia. Lida
assiduamente, gera em mim como uma segunda natureza, oferece respostas
para os problemas do quotidiano, questiona e sugere, adverte e salva,
fazendo que o leitor viva fiel a si próprio, segundo Deus, como
aconteceu com Teresa de Ávila.
Armindo dos Santos Vaz
