Guiados pelo Espírito

Guiados pelo Espírito

Frederico ,OCDSTEXTO PUBLICADO NO JORNAL DE OPINIÃO Nesta semana, participando de uma reunião, fizeram-me a seguinte pergunta: “A plenitude da vida espiritual pode ser alcançada por leigos e leigas ou é exclusividade dos religiosos e sacerdotes?” Pergunta interessante, pois revela o questionamento de até onde nós, cristãos leigos, podemos e devemos caminhar na vida com Deus. Também quer saber, embora não explicitamente, de que se trata esta plenitude espiritual vivida na vida de pais e mães, de trabalhadores que gastam muito tempo do seu cotidiano envolvidos em questões que, aparentemente, não são tão espirituais. Um caminho interessante para refletirmos sobre esta pergunta nos leva a um conceito fundamental: o de espiritualidade. O que é espiritualidade e o que é viver esta dimensão tão fundamental da vida humana e religiosa? Primeiro de tudo, espiritualidade vem da palavra espírito, que é uma tradução do hebraico ruah. Esta tradução, até chegar ao português, ainda passou pelo grego pneuma e, do latim, veio até nós. Ruah significa vento, ar, brisa, respiração, hálito, dentre outros sentidos. E como vento ou respiração, indica movimento, mas não um movimento qualquer: é o mover-se da pessoa a partir de “uma energia que existe dentro dela” [1] e a conduz ao desenvolvimento de uma nova consciência acerca de si, do cosmo, da Igreja, da sociedade, da vida e de Deus. Portanto, espiritualidade quer dizer lidar com esta realidade tão íntima presente em todo ser humano e que lhe dá vida. É o cultivo desta dimensão humana que dá cor à existência e calor aos relacionamentos e projetos em que nos encontramos envolvidos. É uma dimensão da interioridade humana que nos coloca em contato com nossas opções fundamentais, com as escolhas profundas que regem nossa vida e nos dão sentido para viver e existir. E, por isto, espiritualidade diz respeito à realização última de todo ser humano. Assim, não pode ser uma dimensão dispensada ou tratada de qualquer jeito pelas pessoas, ou uma dimensão a ser cultivada exclusivamente por algumas pessoas, como os sacerdotes, mas deve ser uma faceta a ser cultivada e desenvolvida por todos. Para viver radicalmente a vida humana, não há como não buscar uma plenitude espiritual, entendendo espiritualidade na perspectiva acima mencionada. E todos devem almejar esta plenitude, mesmo sabendo que esta não é absoluta, mas é uma plenitude em meio à incompletude que marca nossa vida e tudo que a ela diz respeito, mesmo no cultivo da interioridade e da religiosidade. Porém, embora esta possibilidade de plenitude não seja exclusividade das pessoas dedicadas à vida religiosa, podemos e devemos aprender com estas pessoas alguns elementos fundamentais para se alcançar profundidade de vida. Primeiro, quando alguém busca se consagrar na vida religiosa é porque possui um desejo forte que lhe conduz a uma entrega radical a um projeto de vida que inclui o cultivo da espiritualidade. Sem desejo forte que leve a uma busca contínua e profunda, não há possibilidade de vivência espiritual fecunda. Além disso, os sacerdotes, religiosas e religiosos, criam formas de, no seu cotidiano, serem marcados pela espiritualidade, através de leituras espirituais e teológicas, momentos de oração, orientação espiritual, etc. Por fim – e isto é fundamental – se lhes disponibiliza uma formação sistematizada, processual e ampla para a vivência da espiritualidade. Portanto, cultivam “pra valer” esta dimensão da vida. É bem verdade que, por si só, estar num convento ou dedicar a maior parte de seu tempo a coisas “religiosas” não é garantia de uma experiência espiritual profunda. Pois esta nasce, sobretudo, da capacidade de se assumir profundamente a vida e de por ela se deixar guiar, o que implica estar abertos aos acontecimentos que, muitas vezes, nos arrancam da rotina, do planejado e do estruturado, e nos conduzem a nos implicarmos conosco, nossas opções, com as pessoas e com a realidade, propiciando, assim, o atingir de outros patamares de consciência e da existência. E isto não se aprende em cursos ou por meio de uma vida estruturada – embora possam contribuir –, mas, sobretudo, através de atitudes de abertura e docilidade a Deus que se manifesta em tudo que nos cerca. Outra dimensão a ser cultivada quando se diz respeito à espiritualidade cristã é a que se relaciona com o cultivo da presença de Deus na própria interioridade, na vida e no mundo. Não é a toa que uma das pessoas da Santíssima Trindade é chamada de Espírito Santo. Portanto, espiritualidade quer dizer também da busca de contato desta nossa dimensão tão íntima, que é o nosso espírito, com o Espírito divino. Espírito que nos convida a nos mover por dentro e se encarna em ações comuns da vida humana como “falar, rezar, caminhar, viajar, orientar, cantar, criticar, decidir, ficar alegre, crescer, anunciar, servir etc”. E isto quer dizer que o aspecto extraordinário de sua presença está “escondido no ordinário da vida de cada dia” e é lá que deve “ser descoberto pelo olhar da fé”, sendo que sua ação visa ensinar “como ler a vida e discernir dentro dela o rumo” a ser seguido. [2] Esta vivência nos convoca a rever a própria vida, as atitudes e os valores vividos no cotidiano. A conversão se torna necessária e faz parte do processo de compromisso com Deus que desinstala, transforma, movimenta. Desencadeia um processo que conduz a um novo jeito de ser, de olhar e de escutar, propiciando liberdade interior diante da sociedade consumista, pautada pelas coisas e que transforma também as pessoas, os relacionamentos e a natureza em coisas; sociedade esta que valoriza a imagem, o espetáculo, o sensacionalismo, as aparências, o ter, o parecer ter, e não o ser, cuja tendência é o império da dispersão, da superficialidade dos relacionamentos, dos valores e das opções de vida. De igual maneira, impera a busca do lucro e o individualismo, relegando-se grande parte da humanidade à condições subumanas de vida. Desta maneira, a solidariedade e os valores comunitários são colocados em segundo plano, havendo a tendência de se viver a vida de forma privatizada, inclusive a própria fé, que também pode perder seu caráter comunitário e de compromisso com a história e a transformação do mundo. Em meio a esta profunda noite escura de nossos tempos, espiritualidade é questão de saúde e equilíbrio pessoal e social. Como em Emaús, Deus também se põe a caminhar junto a nós (Lc 24,13-35), apresentando-se como Emanuel, o Deus conosco (Mt 1,23), diante do qual “nosso coração arde”. Ele nos convida a uma reeducação da própria interioridade para que se descubram formas mais humanas de nos relacionarmos conosco mesmos, com o mundo, as pessoas, as coisas e Ele próprio. Convida-nos a crescer em profundidade, compaixão e abertura ao Mistério que a tudo habita. E a esta plenitude, todos somos chamados, vocacionados. Ninguém é excluído.

[1] Carlos MESTERS. Descobrir e discernir o rumo do Espírito. Uma reflexão a partir da Bíblia. In: Ana Maria TEPEDINO (Org.). Amor e discernimento. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 32.
[2] Id., ibid., p. 26-27.

Post a Comment