Revista Época nº 648 – 18/10/2010 – Seção Mente Aberta – Pecar, rezar, amar

Revista Época nº 648 – 18/10/2010 – Seção Mente Aberta – Pecar, rezar, amar

O livro sobre a vida da monja carmelita Teresa vale a todos os interessados por trajetórias de personalidades que transformaram a visão de seu tempo
Mariana Shirai
ORAÇÃO
Santa Teresa em pintura de Thomas Blanchet (1614-1689). Sua autobiografia mostra como atingir vários níveis de devoção
Como vive, pensa e sente uma pessoa dita santa? Esses seres representados por pinturas e esculturas costumam parecer tão próximos do divino que é difícil imaginar que um dia eles, assim como todos nós, realmente experimentaram a existência humana. A leitura do Livro da Vida (Penguin Companhia, 424 páginas, R$ 27,70), autobiografia da espanhola Teresa D’Ávila (1515-1582) que acaba de ganhar tradução de Marcelo Musa Cavallari, é uma maneira de quebrar essa distância.
Mais do que agradar apenas aos que creem na santidade da monja carmelita, a narrativa da vida de Teresa até seus 52 anos vale a todos os interessados por trajetórias de personalidades que, a partir de seus atos e ideias, transformaram a visão de seu tempo.
Teresa não queria ser santa. Aliás, não acreditava ser merecedora dessa virtude. Boa parte do Livro da vida é a confissão, cheia de repulsa, de sua juventude de pecados e vaidades. É difícil, para o leitor moderno, entender como Teresa poderia considerar falha grave o apego a conversas com amigos ou ao relacionamento com familiares. Mesmo sem ser esse o desejo dela, foi canonizada apenas 45 anos depois de sua morte numa época em que a Inquisição perseguia falsas visionárias. A segurança de seu relato no Livro da vida somada a suas obras como fundadora da ordem das “carmelitas descalças” e de 17 conventos ajudou no reconhecimento de suas ideias – e na santificação – pela Igreja.
Na Espanha, o Livro da vida é o segundo clássico em prosa mais lido, atrás apenas de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. É o que descobrimos na introdução de J.M. Cohen, um dos três textos que integram a edição que sai agora. Ele descreve Teresa como “uma escritora nata e mestre da metáfora, do provérbio e da imagem falada”. Para Frei Betto, que assina o prefácio, Teresa equivale ao que significam Copérnico na astronomia e Leonardo nas artes plásticas. A favor da comparação, Teresa promoveu uma revolução no pensamento religioso a partir de uma abordagem moderna, como seus contemporâneos em suas áreas. Ao divulgar a prática da oração meditativa, em silêncio, Teresa transmutava experiência religiosa em algo pessoal. “(Teresa) arrancou Deus dos píncaros celestiais e o situou no cerne da alma”, afirma Frei Betto.
Dez dos 40 capítulos do Livro da vida tratam dos diferentes graus de oração, que, segundo Teresa, são quatro. Para explicar como se deve agir em cada um deles, ela propõe a comparação com o cultivo de um jardim em terras inférteis. No primeiro grau, as dificuldades e tentações são tantas que se igualam ao trabalho necessário para retirar água de um poço. No segundo, mais elevado, o jardineiro recebe a ajuda de uma roda-d’água. Nos últimos dois estágios, um rio e, por fim, a chuva fazem o esforço por aquele que reza. Os benefícios da oração, além de uma vida virtuosa, são da ordem do prazer para Teresa, que os descreve assim: “(a alma) sente, como um deleite enorme e suave, quase desfalecer-se toda, com um jeito de desmaio, pois vai faltando o fôlego e todas as forças corporais”.
A vida de Teresa contada por ela própria é, para além da contemplação religiosa, uma história de amor em que seu herói salvador é – quem mais, senão Ele? – Deus.
Fonte: Revista Época nº 648 – 18/10/2010 – p. 140.

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