A REGRA DOS IRMÃOS DO MONTE CARMELO E A VIDA – Luis Aróstegui, ocd

A REGRA DOS IRMÃOS DO MONTE CARMELO E A VIDA – Luis Aróstegui, ocd

CONFERÊNCIA DO PE. GERAL LUIS ARÓSTEGUI EM LIMA, OUTUBRO DE 2006, PARA A ASSOCIAÇÃO LATINO AMERICANA DE CARMELITAS (ALACAR) – Em Acta Ordinis – Carmelitarum discalceatorum, anno 51, pgs. 71-84 – 2006
Tradução: Frei Wilson Gomes, ocd

A REGRA DOS IRMÃOS DO MONTE CARMELO E A VIDA

1.História de uma evolução
A Regra dos Irmãos da Bem-Aventurada virgem Maria do Monte Carmelo passou por diferentes etapas de redação e de vigência.
A este propósito, permito-me citar a página das conclusões do especialista em historia Carlo Cicconetti, em seu fundamental livro de investigação “La Regola Del Carmelo” (Roma 1973):
1. “A regra do Carmelo é inicialmente uma simples “vitae formula” que Alberto entrega a um grupo de ermitães que moravam no Monte Carmelo, na qualidade de penitentes individuais. A entrega da “vitae formula” pela autoridade episcopal, ou melhor patriarcal, marca o começo jurídico da Ordem. É o primeiro “collegium” de ermitães que constitui a célula originária da Ordem Carmelitana”.
2. O “propositum” destes ermitães é viver “in obsequium Jesus Christi”, em seu “patrimonium”, a Terra Santa. Não se trata da fundação de uma “Ordo” no sentido atual da palavra, senão de uma organização ou reconhecimento jurídico de um pequeno grupo que pretende viver em comum o ideal ascético da penitencia e da solidão na mesma Terra de Jerusalém”.
3. “A “vitae formula” é imposta “in remissionem peccatorum” por Honório III em 1226, depois do Concílio Lateranense IV. Porém, não parece tratar-se de uma “approbatio pontifícia” em sentido estrito: no caso se diria “confirmatio”. A “confirmatio” vem de Gregório IX em 1229”.
4. “Com Gregório IX os Eremitas do Monte Carmelo alcançam certa autonomia de governo e, por meio do “titulus paupertatis”, têm a possibilidade de isenções também de eventuais taxas eclesiásticas (paróquia, diocese) e civis. A única entrada permitida: a criação limitada de animais, aves (volátiles) e asnos”.
5. “A intervenção de Inocencio IV marca o nascimento verdadeiro e próprio da Ordem atual. Com ele, efetivamente, a “vitae formula” converte-se claramente em regra e os Eremitas do Monte Carmelo em verdadeiros “regulares”, com um “status” jurídico certo, diferente de “laici religiose viventes”. Também acontece a transformação em Ordem Mendicante com caráter universal e com governo centralizado”, (…)
6. “A tipologia de vida religiosa prevista na regra enquanto modificado por Inocencio IV não é prevalentemente eremítica, senão na aparência. Com efeito, estão presentes duas possibilidades, uma junto da outra: a escolha de “lugares” fora dos desertos, a “itineratio mendicans”, a pobreza sem entradas fixas, a abundancia da Palavra de Deus no coração e na boca, são elementos da vida mendicante” (…) (pp. 477-8)
Ao longo do século XIII diferentes intervenções dos Papas explicitam o caráter mendicante.
Na história posterior, a Regra Inocenciana é considerada como Regra Primitiva, não obstante ser fruto de certa adaptação. A Regra primitiva, primeira (prescindindo agora da distinção entre Forma de vida e Regra) é a outorgada por santo Alberto, Patriarca de Jerusalem. Esta “vitae formula” manteve seu caráter com as aprovações de Honório III e Gregório IX. Com a aprovação do Papa Inocencio IV (com as modificações introduzidas por seus dois assessores dominicanos) dá-se a evolução à Ordem Mendicante, no contexto da vida e de outras bulas papais, mesmo que o próprio texto da Regra não seja objeto de muita transformação a respeito, ao menos na aparência.
Se com santo Alberto temos a vida cenobítica, como proposta contraposta à eremítica, pode- se discutir, pois na realidade trata-se melhor do uso preciso dos termos. Quando se é ermitão ou não e quando cenobita. Em todo caso, a “vitae formula” de santo Alberto por si mesma reúne e conforma o grupo como corpo moral, e com algumas de suas prescrições avança na linha da vida comum, comunitária. Ao mesmo tempo, para nosso conceito, que tem longa base no uso histórico, era forma de vida eremítica, pelo estilo de solidão, silencio e oração, distante dos povoados e não dedicada ao apostolado.
Esta primeira história e evolução da Regra e do grupo dos religiosos que recebem o nome dos primeiros moradores do Monte Carmelo, até a aprovação de Inocencio IV (com as outras bulas que a explicitam), nos colocam na pista da relação entre Regra e vida.
Uma Regra que começa sendo eremítica, com uma estrutura mínima para o grupo local dos religiosos, evolui para algumas formas de comunidade. Da solidão geográfica do Carmelo (não é totalmente estranha, no entanto, uma relação natural com a Igreja e inclusive com o povo e as pessoas ao redor), passam a morar também na proximidade das cidades e dentro das cidades. A partir da vida estável do Carmelo, começa-se a admitir certas formas de vida mendicante: é recomendada (mesmo que isso pudesse ocorrer na vida eremítica), expressamente por Inocencio IV (Ex officii nostri de 1245). O mesmo papa recomenda aos bispos para que concedam fundações aos carmelitas que emigram para o ocidente e que “aspiram a ser úteis para a salvação de si mesmos e do próximo” (Paganorum incursus 1245).
Considerando, não apenas o texto da Regra, mas também os documentos eclesiais posteriores e a vida dos carmelitas nos diferentes estágios, a diferença seguramente é mais clara e maior. O Padre Geral da Ordem Nicolás, o francês (por volta de 1270) teve diante de si esta realidade, não precisamente a evolução do texto da Regra, que na verdade é mínima. Ele refere-se à evolução da vida, que se transforma na linha da vida mendicante quanto a proximidade às povoações e enquanto dedicam-se à pregação e às confissões.
Na história do Carmelo em geral (começando pelo mencionado Nicolás Gálico) e dentro do Carmelo Teresiano, em particular, houve divergências radicais, que não se podem conduzir a uma unidade superior, mas que eram excludentes. A história das duas Congregações dentro do Carmelo Teresiano, a Espanhola e a Italiana, ilustra claramente este fato. A concepção e a opção divergentes em duas congregações, com constituições, superiores e territórios de expansão separados.
Nas instituições humanas, especialmente nas religiosas, é uma constante a resistência à evolução, devido à legítima preocupação pela fidelidade. No entanto, outras vezes, trata-se de uma opção radical diferente, independente da questão geral da evolução. A evolução mesma, a resistência a ela ou a perseverança no mesmo, é também, antes de tudo, uma opção. Porém o termo evolução denota que esta se desenvolve, enriquece e realiza o impulso ou a inspiração original, enquanto que nas opções radicais diferentes se exclui que se trate de uma evolução no mesmo sentido.
A tradição carmelitana começa sendo eremítica e termina sendo plenamente apostólica, na Igreja de hoje. Não há dúvida de que esta vida apostólica (porém também em outros aspectos) não é aquela vida do Monte Carmelo com alguma evolução no mesmo sentido. Ao menos materialmente não aparece assim. Com efeito, aquelas pessoas que, a semelhança dos primeiros do Monte Carmelo, buscaram somente uma vida eremítica, por exemplo, não se incorporariam aos herdeiros do nome daqueles primitivos, senão que buscariam outra fórmula de vida. Apresento deste modo a questão para refletir sobre a história e a vida e sobre a Regra e a vida.
2. Juízo sobre a primeira evolução da Regra e a Vida
Os eremitas do Monte Carmelo, ao virem para a Europa, encontram-se com as dificuldade de sua implantação pela rejeição ao que era considerado uma multiplicação de fundações de Ordens e encontram-se com a novidade religiosa do movimento Mendicante. Estes eram bem acolhidos pelo povo, porém repudiados e perseguidos pela autoridade da Universidade de Paris, por muitos bispos e padres. Os membros do movimento mendicante mostravam, objetivamente, junto à pobreza e a simplicidade, proximidade e interesse de serviço ao povo.
Os eremitas carmelitas começaram vivendo em oração e penitencia na solidão do Carmelo. Queriam servir a Jesus Cristo na Terra Santa, em sua terra. Este viver em obséquio de Jesus Cristo era o centro e toda a razão de seu modo de vida. Não se tratava, desde este ponto de vista, em primeiro lugar, de um projeto de fundação de uma Ordem, com uma regra precisa e com uns critérios que delimitassem para sempre um modo de vida carismático. O decisivo era o obséquio de Jesus Cristo, que os tinha levado por então até a Terra Santa e ao Monte Carmelo. O critério para eles era o serviço de Jesus Cristo, que naquele momento do Monte Carmelo era de fato a vida de solidão, oração e penitencia. Era um fato aberto. Abertura para receber visitas e ter contatos com as pessoas. Não existia uma proibição expressa de todo apostolado, por exemplo. Nessas condições estava aberto àquilo que o serviço de Jesus Cristo poderia sugerir mais tarde.
Nas novas circunstâncias da Europa (as dificuldades e não menos, a atração pelo estilo evangélico simples e popular), a passagem para o modo mendicante, que conservava por então muito de seu ambiente de solidão e de oração por uma parte e acrescentava, dentro da mesma pobreza e simplicidade, a proximidade e o serviço apostólico ao povo, não foi sentido seguramente pela maioria como um desvio, mas propriamente como uma evolução autentica. Aquele novo movimento, com um novo estilo de obséquio de Jesus Cristo, seguramente foi visto como uma descoberta evangélica, não em contradição com a vida de solidão e oração do Monte Carmelo, que supõe a Regra, mesmo depois das modificações inocencianas. A passagem ocorreu, sem dúvida, paulatinamente, como mostram as intervenções pontifícias posteriores à aprovação de Inocencio IV.
Se o primeiro grupo do Monte Carmelo era constituído por leigos piedosos “religiose viventes”, em penitencia (como aprova Honorio III), vivendo no princípio, individualmente; depois reunidos em “collegium” pela “vitae formula” de Alberto, parece que não devemos projetar neles problemáticas posteriores de vida totalmente contemplativa ou de uma determinação fechada para decisões futuras. Como leigos retirados numa solidão geográfica, não pensavam em dedicar-se ao apostolado, porém, tão pouco parece necessariamente excluído, por razões que hoje se chamam carismáticas. No processo inicial do Monte Carmelo não há um fundador carismático e não se dá uma idéia ou projeto fechado.
Portanto a evolução a “status” mendicante pode entender-se como continuidade.
No entanto, a evolução tem sua dinâmica. Pouco a pouco, às vezes imperceptivelmente, uma coisa chama a outra, enquanto que as novas realidades abordadas por nossas decisões têm sua lógica que não se pode talvez obviar com apenas uma resposta voluntarista. Os caminhos humanos, uma vez empreendidos, obrigam a novas decisões que podem distanciar; independentemente da boa vontade, do ponto de partida. Neste sentido, pode-se entender e há que entender a “Ignea Sagitta” de Nicolás, o Frances, que vê como desvio a evolução tomada e conclama à pureza da vida eremítica, tal como se tinha vivido no contexto do Monte Carmelo e nos primeiros anos de seu translado para a Europa.
Devemos reconhecer que a evolução na primeira “vitae formula” até a correção inocenciana, sobretudo na vida dos que apelavam a ela, pode ser julgada de diversos modos. A opção e desejo de Nicolás, o Frances (citando-o como símbolo) são legítimos. É uma opção. Porém, também, como observei, pode-se julgar sem violência como uma evolução natural. Esta evolução parte da vocação central do obséquio de Jesus Cristo. Um obséquio ou serviço antes de tudo na Terra Santa, Sua terra. Vivendo vida penitente e ocupando a mente e o coração nas coisas de Jesus Cristo, significadas nas palavras: “Lei do Senhor”. A vocação inicial era, sobretudo, este serviço de Jesus Cristo, do modo como podiam fazer aqueles homens, que, acima de tudo, eram leigos piedosos. Porém não se exclui a relação natural com os estranhos, mesmo que se suponha estar no lugar sem vagar, não se exclui também qualquer apostolado, como é o caso de outras opções, em outras circunstâncias.
Portanto, não foi artificial a evolução no sentido da vida mendicante, quando esta nova forma, que não negava a solidão e a contemplação, viu-se seguramente não só mais próxima ao povo, porém inclusive mais próximo, no estilo, à vida mesma de Jesus Cristo e de seus apóstolos.
Na história posterior da Regra e da vida dos carmelitas houve várias reformas sobre a base da Regra, com uma história das chamadas “mitigações”.
3. A Regra no Carmelo Teresiano histórico
Do ponto de vista do Carmelo Teresiano, concebido desde o início, de modo geral, como uma reforma (“reforma” que de fato baseada e identificada com o ideal da Regra Primitiva, frente à “Regra mitigada”, de Eugenio IV), este movimento entroncou-se com a Regra e com a vida, não com a primitiva eremítica do Monte Carmelo, senão a cenobítica ou comunitária, mendicante e apostólica, tal como se estabeleceu pela Igreja e na Igreja. A volta à Regra Primitiva, incluía a vida apostólica, que de modo natural já fazia parte, institucionalmente e praticamente, do espírito do Carmelo.
Acerca da Regra destaca-se que é sem “mitigação” e neste sentido primitiva. Não se coloca em questão, ao princípio do movimento, seu caráter mendicante, tanto no que se refere à itinerância como ao apostolado. Certamente, a Regra oferece ou confirma as idéias de solidão, contemplação e penitencia.
Santa Teresa fez seu caminho do que chama conversão, isto é, a entrega ao Senhor numa oração de amizade e de união, no Carmelo da Encarnação, numa experiência bem pessoal. Experiência de Cristo e de fidelidade pessoal a ele. Não entrava nesse processo pessoal a questão da Regra primitiva. Só mais tarde, a partir do plano de constituir uma pequena comunidade com os mesmos ideais de oração e de vida fervorosa de entrega, vivendo com a maior perfeição possível os conselhos evangélicos, conhece a existência da Regra primitiva, não mitigada e portanto, em seu conceito, mais perfeita. Por isso, desejando viver o mais perfeitamente possível os conselhos evangélicos, sendo já carmelita, era natural que anelasse viver de acorda com a Regra primitiva, mais perfeita para os conceitos do tempo.
Na história posterior do Carmelo Teresiano, houve uma divergência, ao menos de fato insuperável, na interpretação do carisma carmelitano tal como refletido na Regra, que era o texto básico para todos. A Congregação Italiana admitia o apostolado, de acordo com a história eclesial anterior do Carmelo e também as missões: a Congregação Espanhola, admitindo limitadamente o apostolado (e excluindo as missões), tendeu a uma interpretação literal para o eremitismo e a observância regular idêntica para todos.
4. O Carmelo Teresiano diante da Regra, hoje
Hoje o Carmelo Teresiano considera a Regra como documento histórico, que deu sustento espiritual e jurídico ao Carmelo através de sua evolução e como realidade espiritual atual e inspiradora de vida.
Para o Carmelo Teresiano, o fato de Santa Teresa de Jesus e de outras figuras carismáticas junto com ela ocuparem um lugar na história da Igreja e na história do movimento carmelitano, representa uma autentica novidade de inspiração para os que a seguem. Estabelece-se, portanto, uma relação especial e nova entre a Regra, Santa Teresa e o presente.
Para aclarar o que se quer dizer, me servirei de um exemplo histórico. No princípio do século XVII, a já constituída Congregação Italiana foi convidada pelo papa Clemente VIII a enviar missionários como legados seus diante do Xá da Pérsia. Os Padres da Itália quiseram estudar a fundo nos anos 1603-1604 a questão: se as missões eram compatíveis com o espírito do Carmelo. Uma intervenção decisiva foi a do venerável P. João de Jesus Maria. Redigiu dois escritos breves: em sua defesa, demonstra que as missões não só são permitidas para nosso Instituto, senão que são algo próprio e que lhe pertencem: nascem de seu ser. Razoa primeiramente que no devir histórico, a aceitação como Ordem mendicante pelo papa foi, ao seu juízo, uma mudança transcendental para ela. “Qualquer coisa que se possa dizer da forma pirmitiva de nossa Religião, depois da confirmação pontifícia pela qual fomos admitidos entre as ordens mendicantes, não há nada que objetar. Por isto, fica refutado o que se possa opor por nosso nome de Eremitas. Seja qualquer o nome com o qual nos chamem, os papas nos admitiram como Mendicantes” (Tractatus, Scritti Missionarii, 167-169).
Nesta citação adverte-se o conceito de evolução histórica e o sentido eclesial da vida consagrada, pelo qual a natureza do Instituto se constitui pela aceitação e aprovação eclesial.
No entanto, o seguinte texto é pertinente para nosso objetivo presente: “Por último, ou aprovamos o espírito da beata Virgem nossa Madre Teresa, ou não; igualmente, ou a veneramos como Fundadora ou não. Reprovar seu espírito seria temeridade; negar o fato da fundação, ingratidão. Sendo, pois claro que a beata Virgem Teresa desejou as missões mais ardentemente que o martírio, e que para este fim ordenou as fadigas e as orações próprias e de sua gente, isto é, a fim de que quem se dedica à conversão dos hereges possa ter êxito na empresa, quem pode negar que sua idéia fosse chegar a obter mediante nossos frades, seus filhos, o que não pôde obter com suas filhas? (Idem, 174).
Apesar do Pe. Gracian ter atuado anteriormente no mesmo sentido com incomparável amplitude humana e apostólica, com criatividade, enviou carmelitas para as missões durante a vida de santa Teresa e de acordo com ela. Esta argumentação de João de Jesus Maria é uma expressão clara do critério carismático e nesse sentido a recordamos aqui.
No princípio do século XVII quando santa Teresa ainda não tinha sido beatificado, o Pe. João Calagurritano emprega o critério carismático do espírito da Madre Teresa para determinar o carisma da Ordem.
O Carmelo teresiano recebe a Regra, na Igreja, através de Santa Teresa: de sua experiência humana, cristológica e eclesial. Apesar de termos referido ao estágio anterior da Ordem, a partir da aprovação de Inocencio IV, para o Carmelo Teresiano todo o conjunto espiritual de Santa Teresa e as outras figuras que a seguem constitui critério carismático. No sentido da argumentação a favor das missões empregado pelo Pe. João de Jesus Maria.
Trata-se daquilo que na filosofia dos desenvolvimentos históricos chama-se síntese e superação. Quer dizer que o valor precedente é assumido e integrado numa vitalidade e fecundidade nova, para aqueles que aderem a essa nova realidade determinada.
Quem lê a Regra materialmente, sem os desenvolvimentos vitais da vida dos frades, pode discutir, por exemplo, sobre a quantidade de apostolado ou o lugar do apostolado nela. Porém o Carmelo Teresiano que conhece a experiência espiritual daquela que considera fundadora espiritual, não só não pode negar, senão que vê que toda a vida do Carmelo está dirigida para a Igreja. Santa Teresa, para o Carmelo Teresiano, é fonte nova. A Regra está nela, está numa pessoa viva.
Por isso na linha da Congregação Espanhola, no princípio do século XVII, o Geral Alonso de Jesus Maria, que acentuou a tendência eremítica, teve que esconder (difuminar – esfumaçar) que a Madre Teresa fosse fundadora dos frades. Coisa que para João de Jesus Maria era uma ingratidão.
5. Regra e Vida
Numa reflexão sobre a evolução de um movimento que apela para uma Regra, a um fundador ou a umas origens históricas determinadas, sempre é necessária a confrontação entre a origem, a vida e a história. Este é um tema geral, que agora temos que estudar mais. É evidente que todas as realidades humanas, todas as instituições evoluem ao compasso da história. A Igreja de hoje não é a Igreja do primeiro século ou do quarto, ou do século dezesseis, nem sequer a Igreja de cinqüenta anos atrás. A identidade, ou a legitimidade da evolução, deve ser pensada de outra maneira, não de modo estático, de sorte que as formas permaneçam petrificadas. Esta identidade material, maior ou menor, pode perseguir-se, porém, certamente não existe na realidade mesma da Igreja, para referir-nos a um referencial básico para todos nós.
Nós, hoje, após a renovação do Vaticano II, da teologia da vida religiosa e do conhecimento dos condicionamentos históricos, temos uma relação diferente com todo o passado. A idéia da inspiração é fundamental nesta relação entre passado e presente.
Muitas prescrições concretas de códices do passado frequentemente perdem vigência, de modo que literalmente não se pode dizer que seja uma norma. A vitalidade do passado consiste precisamente em sua capacidade de inspirar, de sugerir, impulsionar, abrir a novos horizontes. Isto, no entanto, não é arbitrário. Por exemplo, diante do texto da Regra (Inocenciana) não podemos dizer que ele seja especialmente inspirador apostólicamente. Vimos que neste aspecto a Regra não sofreu mudança, ainda que sim a Ordem por meio de bulas papais e a vida real. No entanto, há outros aspectos da Regra que certamente são explicitamente inspiradores. O mesmo podemos dizer, dentro do Carmelo teresiano, com respeito à vida concreta de nossos santos Padres. É um tema sempre difícil, ou delicado, que requer a autenticidade profunda que eles tiveram, para discernir hoje com autenticidade.
A Ordem do Carmelo, com a Regra, a evolução histórica e o Carmelo Teresiano com sua própria história, encontra-se diante da possibilidade de uma pluriformidade. Com respeito a isso, os avatares históricos nos ensinam, por uma parte, as tendências que finalmente eram infecundas, superficiais, ou inclusive infiéis e tendências diferentes e novas, com uma fecundidade evangélica e humana profunda.
Concretamente, no Carmelo Teresiano a referencia à Regra (dentro da vitalidade pessoal de nossos santos e místicos), pode irradiar-se em diferentes formas.
De fato, antes da existência dos chamados Desertos (que constituíam a permanência da vida eremítica dentro da Ordem, evoluída ao status de Ordem mendicante), houve fundações que por sua situação geográfica e sociológica, correspondiam de modo natural, ainda materialmente, com o ideal de alguma forma eremítica. Certamente, dentro da vida cenobítica. A realidade das missões no Carmelo teresiano foi outra realidade diferente, obviamente. Outras formas de presença, pessoais e comunitárias, apresentavam também modalidade de vida concreta diversa.
Hoje nos encontramos com uma grande variedade de formas. Refiro-me aos frades, no meio dos quais a vida ativa introduziu necessariamente realidades diferentes. Neste sentido, pode-se dizer que na forma de vida contemplativa das monjas é diferente, apesar de, evidentemente, sujeita também à evolução. Com efeito, as casas das monjas e os meios que empregam hoje não são as casas do Monte Carmelo nem os daquelas de alguns séculos atrás. Supondo isto, nos Carmelos de Santa Teresa, que, como formas de vida contemplativa, integram sempre oração, solidão, silencio, trabalho, comunidade e fraternidade, podem ocorrer diversas modalidades que acentuam a solidão (as “eremitas” de santa Teresa), outras formas mais comunitárias ou com outras acentuações.
A variedade pertence não menos ao Carmelo Secular. Em realidade em seu conceito mesmo é uma profunda novidade na história das Ordens. Em nosso caso, é o Carmelo no mundo. Baseia-se na convicção de que a espiritualidade carmelitana por sua própria profundidade e por isto, por sua simplicidade, pode ser vivida, de um modo próprio, na forma de vida secular. Porém, esta mesma realidade do Carmelo Secular é uma prova do que temos sugerido a respeito da evolução, enquanto que a espiritualidade que teve origem na solidão, inclusive eremítica, encontrou modo de radicar-se em meio ao mundo.
Todas as formas, em sua pluriformidade, devem encontrar sua identidade precisamente na espiritualidade e para isso é decisivo o contato vivo com a experiência das testemunhas do Carmelo.
O discernimento sobre as formas concretas da vida é sempre necessário. No entanto, como critério decisivo permanece o pressuposto evangélico do qual se parte, a qualidade de entrega, a verdade de vida com que se faz o discernimento. É impossível que a voz silenciosa da Regra, a experiência e entrega dos Pais não tenha uma palavra de inspiração para nós, que queremos ser seus filhos.
6. Presença da Regra no Carmelo de hoje
A Regra do Carmelo, tal como ficou elaborada a partir de Inocencio IV, tem um caráter de simplicidade, de amplitude e de equilíbrio.
A simplicidade refere-se tanto ao mosteiro como ao conjunto de celas, à organização da vida da comunidade e às relações entre os irmãos.
Não contém muitas, nem detalhadas normas.
Não há exagero ou rigor com respeito à clausura, à penitencia, ao silencio, nem com respeito à multidão de orações prescritas. As prescrições relativas são as comuns em seu tempo e se apresentam com humanidade e naturalidade. No entanto, é fácil reconhecer que por diversas condições, a vida nos primeiros tempos e mais tarde, realmente, era de fato penitente e dura.
A parte mais importante dela, tanto na intenção como na extensão, está dedicada à atitude espiritual e aos meios para alcançá-la. Desde o princípio fundamenta as normas e o empenho religioso, explicita ou implicitamente, na Sagrada Escritura, como Regra que destaca a vocação central no “meditar dia e noite a Lei do Senhor”.
Expressão de seu equilíbrio é a apelação à prudência ou discretio, como moderadora das virtudes e as palavras “se é possível” ou “para a necessidade não existe lei”.
Esta simplicidade, equilíbrio e normalidade criam uma atmosfera espiritual de paz. Este ambiente, a atenção dirigida à vida espiritual e sobretudo a Jesus Cristo, é o que atrai nesta Regra simples.
Nas diversas formas do Carmelo atual permanecem sempre a recordação da solidão e do silencio, ainda nas formas mais apostólicas, missionárias e comprometidas, segundo as circunstancias. A recordação é um chamado atual, uma mentalidade. Não é, nem tem que ser uma má consciência de que se está fora do lugar, de que não se está naquilo que é próprio. A solidão silenciosa do Carmelo é uma instância, um componente da vocação comunitária e pessoal; porém, serve também para criar essa solidão silenciosa em meio ao compromisso, da multidão, como Jesus no evangelho, em cujo obséquio e imitação sobretudo querem viver os carmelitas. Este componente do Carmelo é expresso também em formas físicas particulares de solidão, porém, estas não expressam toda a realidade do Carmelo e não constituem tão pouco as formas ideais para onde tiveram que se inclinar todas as demais. Inclusive essas formas mesmas de solidão no Carmelo necessitam ser contra-balançadas pelo realismo de outras presenças carmelitanas em meio ao povo de Deus e são interpeladas pelas outras formas do Carmelo comprometido ativamente com o Reino de Deus.
No processo espiritual do Carmelo do deserto, a solidão geográfica, evoluiu para a solidão teológica da ausência de Deus e de seu reino no mundo. A mais profunda solidão e o mais radical deserto para o espírito humano. A vivencia deste deserto pertence de modo particular ao Carmelo. É uma solidão que inclusive pode ser maior em meio aos caminhos e às pessoas.
Este deserto chama-se também “noite” na experiência teologal do Carmelo. A noite faz desaparecer as luzes e as formas e deixa a pessoa só nela.
A solidão e o silencio se converteram sobretudo em realidades teologais e esta é uma contribuição decisiva do Carmelo à experiência da Igreja e também num certo sentido para a humanidade. A experiência do Carmelo para o interior teologal criou sua própria geografia espiritual.
O deserto teologal, a noite do desamparo, que não se dissimula no Carmelo, se anuncia, apesar de tudo, como esperançoso: “Oh noite mais amável que a alvorada”.
Escutamos as vozes das testemunhas do passado desde o que somos nós mesmos hoje, a partir do nosso hoje. Não somos obrigados a conservar o passado, mas aquilo que é autenticamente permanente. Aqueles que querem viver autenticamente hoje buscam inspiração no passado, nas testemunhas autenticas. Essa inspiração supõe a busca e a autenticidade humana e evangélica com que se quer viver o hoje. Somente assim cabe um encontro inspirador com o passado. Tanto no que concerne ao respeito e a veracidade para com o passado, quanto pelo respeito à autenticidade de hoje. O discernimento do Carmelo valoriza os meios de sua tradição e outros, e, ao mesmo tempo, em seu caminho rumo ao coração do evangelho (o caminho para Jesus é a norma de vida) aprendeu a relativizar também os meios, a distinguir o simples psicológico do evangélico e a natureza individual do carisma eclesial.
Usando o dito evangélico num sentido bem amplo, podemos dizer que a verdade nos fará livres. Neste caso, nos referimos à verdade do conhecimento histórico; história objetiva da expressão dos valores, condicionadas pelos contextos culturais; nos referimos não menos à verdade de nossa atitude vocacional, à autenticidade de nosso discernimento diante do evangelho vivo hoje. Esta dupla verdade é o lugar de uma liberdade responsável e fecunda. Esta atitude favorece a integração dos diferentes aspectos e cria positividade e alegria. Portanto, mostra-se como fator de humanização e de realização do Reino, para todas as vocações e todas as modestas tentativas humanas.
Lima, outubro de 2006
Luis Aróstegui, OCD
Tradução: Frei Wilson Gomes, ocd

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