Formação Carmelitana – Santa Teresa: apóstola da Humanidade de Cristo

Formação Carmelitana – Santa Teresa: apóstola da Humanidade de Cristo

Artur Viana

Com. Flor do Carmelo de Sta. Teresinha

Fortaleza – CE

Não é raro encontrar, na literatura teresiana, reflexões que fazem relacionar a experiência espiritual de Santa Teresa com a Humanidade de Cristo. Em uma obra do padre Secundino Castro, um grande teresianista e cristólogo, lemos este excerto: “Teresa cristificou a mística e a levou a sua plenitude clarificadora (…) De tal maneira que, a meu entender, até ela talvez a mística não fora de todo cristã”. Declaração que talvez julguemos forte e impactante, pois considerar Teresa de Jesus aquela por quem a mística se tornou realmente cristã é dizer que, em quinze séculos de história da Igreja, a mística católica ainda não tinha compreendido a necessidade de centralizar a pessoa de Jesus Cristo em todos os momentos e estágios da vida espiritual. 

Obviamente Cristo não foi um desconhecido para os místicos anteriores a Teresa, isso ela mesma reconhece. Ao lançarmos um olhar para a espiritualidade que lhe precede, encontramos, por exemplo, São Francisco de Assis que, em sua vivência espiritual, não só contemplou a glória do Verbo divino, como também os mistérios da sua vida humana, de tal forma a se configurar a eles. Contudo, Santa Teresa, além de nos testemunhar uma vivência espiritual cristocêntrica, oferece-nos uma doutrina espiritual cuja base é Cristo mesmo, e este não só em sua natureza divina, mas, sobretudo, em sua condição humana, de tal forma que, assim pontuando sua espiritualidade, liberta a mística cristã do pensamento platônico que distingue, em termos de importância e de relação com Deus, corpo e alma. A Santa Doutora apresenta sua doutrina acerca da Humanidade de Cristo em várias partes de seus escritos, entretanto se detém nesse assunto e o sistematiza melhor em duas de suas obras maiores: Vida, capítulo 22, e em Moradas 6, capítulo 7.

Esses capítulos, além de serem uma verdadeira aula de Cristologia – embora não fosse esse o propósito da autora –, podem ser considerados, ainda mais, uma defesa da Humanidade de Cristo, pois, como já explicamos, a espiritualidade dessa época dizia ser necessário prescindir da Sagrada Humanidade, se o orante quisesse chegar aos altos graus da contemplação. Faz menção a isso a própria Santa, já no começo do capítulo 22 do Livro da Vida:

Em alguns livros de oração que estão escritos dizem que a alma, ainda que só por si não possa chegar a este estado [contemplação], por ser inteiramente sobrenatural e obra do Senhor, pode, no entanto, ajudar-se, desapegando o espírito de todas as criaturas e elevando-o com humildade, após muitos anos na via purgativa e aproveitamento na iluminativa. (…) Estão sempre a dizer para afastar de si toda a imaginação corpórea para que cheguem a contemplar a Divindade. Até dizem que, embora se trate da Humanidade de Cristo, ela embaraça ou impede a mais perfeita contemplação aos que já vão tão adiantados. (…) A mim, parece-me que se acreditassem que o Senhor era Deus e Homem, como aconteceu depois da vinda do Espírito Santo, não lhes seria impedimento. Isto não foi dito à Mãe de Deus, embora O amasse mais do que todos. Eles pensam que, sendo a contemplação uma obra inteiramente do espírito, qualquer coisa corpórea a pode estorvar ou impedir. O que se há de procurar, dizem eles, é crer de maneira perfeita que Deus está em toda a parte e se ver submergido Nele. Às vezes parece-me bem, mas o que eu não posso tolerar é que afastem totalmente a Cristo e ponham este divino corpo na mesma conta das nossas misérias e das criaturas! Praza a Sua Majestade que eu me saiba explicar.

Possivelmente, Santa Teresa, ao falar de alguns livros de oração, esteja se referindo ao Terceiro Abecedário, de Francisco de Osuna, com o qual teve contato e no qual se pode ler, já no Prólogo, a opinião comum acerca da Humanidade de Cristo: 

Pois que, aos apóstolos, foi coisa conveniente deixar algum tempo a contemplação da Humanidade do Senhor, para mais livremente se ocupar por inteiro na contemplação da divindade, bem parece convir isso também, por algum tempo, aos que queiram subir a maior estado.

Osuna trata, aqui, da contemplação, um grau alto de oração mística, em que, segundo ele, não se faz necessária a meditação da Sagrada Humanidade. O mesmo, contudo, não dirá o franciscano ao se referir a estágios iniciais de oração, pelo contrário: “a sacratíssima humanidade de Cristo, nosso Deus e Senhor, quando é de sua parte, não impede nem estorva o recolhimento por apurado e algo que seja”. Santa Teresa, por sua vez, ensina ser fundamental a consideração da Humanidade de Cristo não só nos primeiros graus da oração, como também nos mais avançados: “não queira outro caminho, ainda esteja no cume da contemplação; por aqui [caminho da Humanidade de Cristo] vai seguro.”, inclusive reforçando sua importância nas sextas moradas, em que se dá o desposório espiritual, e já nas sétimas moradas, na qual se contrai o matrimônio, vemos sua experiência com o Cristo em sua Humanidade, em corpo glorioso.

Podemos nos perguntar, então, por que a espiritualidade da época de Santa Teresa dizia ser necessário prescindir da Humanidade de Cristo para chegar à união com Deus. Isso se deve, muito provavelmente, à compreensão platônico-patrística de caráter dualista, que não deixa de ter certa influência da Renascença, pelo resgate do pensamento clássico. Tal conceito considera o corpo como uma realidade inferior à alma e submetida a ela; a alma, por sua vez, é prisioneira desse “cárcere” que a detém e a oprime. Compreendendo a espiritualidade nessa perspectiva, tal pensamento sugere, em últimas consequências, que um caminho de comunhão com Deus, por sua vez puro espírito, consiste num processo de ascensão da alma, de sua libertação da matéria para gozar de Deus, que só se comunica com a substância espiritual; partindo desse princípio, não só o corpo não é necessário, como, mais que isso, é um impedimento para tal elevação, devendo-se, portanto, negá-lo. Em menor e maior escala, essa concepção influenciou de tal forma o pensamento religioso que alguns livros e correntes de espiritualidade da época de Santa Teresa sugeriam não apenas a negação do corpóreo, mas, inclusive, diziam ser necessário prescindir da Humanidade de Cristo para alcançar o topo da vida espiritual. Obviamente, não se negava o dogma da União Hipostática, proclamado no século V, pelo Concílio de Calcedônia, todavia o construto religioso platônico tendia tanto para o espiritual que não só o corpo do homem era desconsiderado na oração, como também o Corpo de Cristo.

Considerando essa informação acerca da espiritualidade do Século de Ouro, podemos ler, agora, com outras lentes os textos teresianos sobre a Humanidade de Cristo e entender o porquê da insistência de Teresa em defender e reiterar, mais que uma mera devoção, senão uma necessidade de considerar o Cristo Homem, sua vida no mundo, seus anos entre nós, seu Corpo santíssimo.

Dessa maneira, resumimos, assim, este ponto de reflexão, com o que escreveu Olegario González de Cardedal: “Santa Teresa de Jesus, por instinto sobrenatural, centra toda sua cristologia na Humanidade de Cristo, como lugar definitivo de revelação e de Deus, que não tem que ser transcendido até uma essência divina que estaria para além de Jesus.”

REFERÊNCIAS

CASTRO SÁNCHEZ S. La mística de Teresa de Jesús. Burgos: Editorial Fonte; 2017.

JESUS ST. Obras completas. Marco de Canaveses: Edições Carmelo; 2015.

GONZÁLEZ DE CARDEDAL O. Fundamentos de Cristología I: El camino. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos; 2005.

OSUNA F. Tercer Abecedario Espiritual. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos; 1972.

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